https://jkrishnamurti.org/content/buenos-aires-3rd-public-talk-19th-july-1935

                                                                                                                             3ª Palestra em Buenos Aires

Amigos, se nossas ações forem meramente o resultado de algumas reações superficiais, então elas levarão à confusão, miséria, expressões individuais egoístas. Se pudermos compreender a causa fundamental da nossa ação e libertá-la de suas limitações, então a ação inevitavelmente trará inteligência e cooperação no mundo.

Muitas das nossas ações nascem da compulsão, influência, dominação ou medo, mas há uma ação que é o resultado da compreensão voluntária. Cada um de nós se depara com a seguinte questão: somos capazes dessa ação voluntária inteligente ou devemos ser forçados, direcionados, controlados? Para realizar, para compreender a vida completamente deve haver ação voluntária.

A ação nascida de alguma reação superficial inevitavelmente torna a mente superficial e limitada. Tomemos como exemplo o ciúme. Lidando com o ciúme superficialmente, nós esperamos acabar com ele, nos livrar dele. Tentamos controlá-lo, sublimá-lo ou esquecê-lo. Essa ação apenas lida com um sintoma superficial sem compreender a causa fundamental da qual nasce a reação do ciúme. A causa é a possessividade. A ação nascida de uma reação, de um sintoma, sem a compreensão da causa, certamente levará a um conflito e sofrimento maiores. Quando a mente está livre da causa, que é a possessividade, então o sintoma, que é o ciúme, desaparece. É totalmente inútil lidar com um sintoma, com uma reação.

Novamente, nós temos que descobrir e compreender por nós mesmos como agimos em relação ao sistema de exploração estabelecido; se estamos lidando com ele apenas superficialmente e, portanto, aumentando seus problemas ou se nossa ação nasce da liberdade da ganância, que causa exploração. Se considerarmos profundamente a causa da exploração, então perceberemos que ela é o resultado da ganância. E embora às vezes possamos resolver problemas superficiais, até que estejamos verdadeiramente livres da causa, outros problemas e conflitos surgirão continuamente.

Usando um exemplo. Nós passamos de uma seita confusa para outra, grande ou pequena, com seus dogmas, credos, autoridade e exploração organizadas. Nós passamos de um professor para outro; de uma gaiola de crença organizada, nós caímos em outra. A causa fundamental da existência da crença organizada, que controla e domina o homem, é o medo. E até que ele esteja realmente livre dele sua ação será limitada, criando, portanto, mais sofrimento.

Cada um de nós é confrontado com este problema: devemos agir superficialmente por meio da reação ou, através da compreensão da causa da exploração, despertar a inteligência? Se meramente agirmos através de reações superficiais, nós inevitavelmente criaremos maiores divisões, conflitos e misérias. Mas se realmente entendermos a causa fundamental de todo esse caos e agirmos a partir dessa compreensão, então haverá a verdadeira inteligência, que sozinha poderá criar o ambiente certo para que cada indivíduo se realize.

Pergunta: Se você renunciou a posses, dinheiro, propriedades, como você diz que fez, o que você pensa da Comissão que organiza sua turnê e vende seus livros no mesmo teatro onde você dá suas palestras? Você também não está explorando e sendo explorado?

Krishnamurti: Nem a Comissão nem eu ganhamos dinheiro com essas vendas. A despesa do aluguel deste teatro é paga por alguns amigos. Todo o dinheiro recebido com a venda desses livros é usado para imprimir mais livros e panfletos. Como alguns de nós pensamos que essas ideias serão de grande ajuda para o homem, nós desejamos espalhá-las, e para mim esse desejo não é exploração. Você não precisa comprar os livros nem comparecer a essas palestras. (Aplausos) Você não vai perder uma oportunidade espiritual não vindo aqui.

A exploração existe quando uma pessoa ou algum valor ou ideia inquestionável domina e força você, de forma grosseira ou sutil, a uma ação específica. O que estamos tentando fazer é ajudá-lo a despertar sua própria inteligência para que você possa discernir por si mesmo a causa fundamental do sofrimento. Se você não discernir por si mesmo e não se libertar de todas essas limitações que esmagam sua mente e seu coração, então não poderá haver verdadeira felicidade ou inteligência.

Pergunta: Abrir mão de toda autoridade, disciplina, credo e dogma pode ser correto para o homem educado, mas não seria pernicioso para o ignorante?

Krishnamurti: É muito difícil determinar quem é ignorante e quem é educado. Mas o que podemos fazer é descobrir por nós mesmos, individualmente, se a autoridade, com todo o seu significado, é realmente benéfica. Por favor, compreenda o profundo significado da autoridade. Uma pessoa cria sua própria autoridade quando há o desejo de se proteger ou de se abrigar em uma esperança ou em um ideal ou em um certo conjunto de valores. Essa autoridade, esse sistema de pensamento autodefensivo impede a pessoa de viver completamente, de se realizar. A partir do desejo de segurança surgem disciplinas, crenças, ideais e dogmas. Se vocês, que são supostamente educados, estiverem realmente livres da autoridade com todo o seu significado, então naturalmente vocês criarão o ambiente certo para aqueles que ainda estão presos à autoridade, à tradição, ao medo.

Portanto, a questão não é o que acontecerá com o homem desafortunado que não é educado, mas se vocês, como indivíduos, compreenderam o profundo significado da autoridade, disciplina, crença e credo, e se estão verdadeiramente livres de tudo isso. Considerar o que acontecerá com o homem ignorante se ele não for controlado é fundamentalmente uma maneira falsa de tentar ajudá-lo. Essa atitude é o próprio espírito da exploração. Se você desse a oportunidade para o chamado homem ignorante despertar sua própria inteligência e não dominá-lo ou forçá-lo a seguir seu sistema ou padrão de pensamento particular, então haveria realização para todos.

Pergunta: Você acha que os explorados e desempregados devem se organizar para destruir o capitalismo?

Krishnamurti: Se vocês pensam que o sistema capitalista está esmagando e destruindo a inteligência e a realização individual, então vocês, como indivíduos, devem se libertar dele compreendendo verdadeiramente as causas que o criaram. Como eu disse, o sistema capitalista se baseia na aquisitividade, na segurança individual, tanto religiosa quanto econômica. Agora, se vocês, como indivíduos, discernirem isso completamente e se livrarem disso, então uma verdadeira organização de cooperação inteligente surgirá naturalmente. Mas se vocês criarem uma organização sem discernimento, então vocês se tornarão escravos dela. Se cada indivíduo realmente tentar se libertar dos desejos egoístas, ambições, sucesso, então quaisquer que sejam as expressões dessa inteligência, elas não dominarão e oprimirão o homem.

Pergunta: O que você quer dizer por moralidade e amor?

Krishnamurti: Vamos examinar a moralidade atual para descobrir qual deve ser a verdadeira moralidade. Em que se baseia todo o nosso sistema de moralidade, tanto o religioso quanto o econômico? Ele é baseado na segurança individual, na busca pela própria proteção. A moralidade atual se baseia em completo egoísmo. Existem, felizmente, uns poucos que estão fora dessa moralidade fechada.

Para descobrir o que é a verdadeira moralidade, nós devemos começar a nos libertar individualmente, através da compreensão, dessa moralidade fechada; o que significa que devemos começar a duvidar, a questionar os valores da moralidade atual. Você deve descobrir de acordo com quais padrões morais está agindo; se sua ação é o resultado da compulsão, da tradição ou do seu próprio desejo de estar seguro, protegido. Agora, se você está apenas se conformando com uma moralidade de segurança individual, então não pode haver inteligência nem a verdadeira felicidade humana. Como indivíduos, vocês devem entrar em conflito, de forma inteligente, com esse sistema moral egoísta, porque é somente através do conflito inteligente, por meio do sofrimento que vocês discernem o verdadeiro significado desses padrões morais. Você não pode descobrir seu verdadeiro valor apenas intelectualmente.  

Agora, a maioria de nós tem medo de questionar, de duvidar, porque tal questionamento trará ações definitivas, exigirá alterações definitivas em nossa vida diária. Portanto, preferimos discutir meramente intelectualmente o que é a verdadeira moralidade.

O interrogante também quer saber o que é amor. Para compreender o que é o verdadeiro amor, nós precisamos entender nossa atitude, pensamento e ação atuais em relação ao amor. Se você realmente pensasse sobre isso, você veria que o nosso amor é baseado na possessividade, e nossas leis e éticas são fundadas nesse desejo de possuir e controlar. Como pode haver amor profundo quando há esse desejo de possuir, de manter? Quando a mente está livre da possessividade, então há aquela beleza, a bem-aventurança do amor.

Pergunta: Devemos ceder àqueles que estão contra nós ou fugir?

Krishnamurti: Nenhum dos dois. Se você simplesmente cede, certamente nisso não há compreensão; e se você meramente foge, nisso há medo. Se sua ação for baseada não em uma reação, mas na compreensão plena das causas fundamentais, então não há a questão de desistir ou fugir. Então você está agindo verdadeiramente, de forma inteligente.

Pergunta: Você está nos dando teorias caóticas e nos incitando a uma revolta inútil. Gostaria de ter sua resposta a essa afirmação.

Krishnamurti: Não estou lhe dando nenhuma teoria nem incitando você à revolta. Se eu incitá-lo à rebelião, e você ceder, então outro virá e o colocará para dormir novamente. (Risos) Portanto, o importante é descobrir se você está sofrendo. Agora, um homem que está sofrendo não precisa ser incitado à rebelião; mas ele deve se manter desperto para compreender a causa do sofrimento e não ser adormecido por explicações e ideais. Se você pensar com muito cuidado, verá que, quando há sofrimento, há um desejo de ser confortado, de ser colocado para dormir. Quando você sofre sua reação imediata é buscar conforto; e aqueles que lhe dão conforto, consolo, tornam-se para você uma autoridade que você segue cegamente. Através dessa autoridade seu sofrimento é justificado. A função do sofrimento real, que é despertar a inteligência, é negada pela busca de conforto.

Agora, você precisa se perguntar se, como indivíduo, você está satisfeito com as atuais condições religiosas, sociais e econômicas, e se não estiver, qual é sua ação em relação a elas. Não como um grupo ou massa, mas como indivíduos. Quando você se faz essa pergunta, você inevitavelmente entra em conflito com todas essas autoridades e dogmas religiosos, com todas essas moralidades baseadas em desejos egoístas e com esse sistema que explora o indivíduo em benefício de poucos. Não estou incitando você à rebelião nem lhe dando novas teorias. Eu digo que você pode viver com plenitude e inteligência quando a mente se liberta das estupidezes dos desejos egoístas e limitados. Quando você começa a descobrir o verdadeiro significado dos valores que você construiu ao seu redor, quando a mente e o coração se libertam do medo que criou doutrinas, crenças, ideais, que estão continuamente impedindo você, então há realização, o fluxo da realidade.

Pergunta: É natural que os homens matem uns aos outros na guerra?

Krishnamurti: Para descobrir se é natural ou não, você deve descobrir se a guerra é essencial, se a guerra é a maneira mais inteligente de resolver problemas políticos ou econômicos. Você deve questionar todo o sistema que leva à guerra.

Agora, como eu disse, o nacionalismo é uma doença. O nacionalismo é usado como um meio de explorar as massas, é o resultado de interesses constituídos. Por favor, pensem nisso e ajam individualmente.  

O nacionalismo, com seus governos separatistas e soberanos que não consideram a humanidade como um todo e que é baseado em distinções de classe e interesses constituídos – você acha que o nacionalismo é natural, humano, inteligente? Ele não é o resultado da exploração e o instrumento para incitar as pessoas a lutar para que alguns se beneficiem? Além disso, nós criamos uma necessidade psicológica por guerras, que é a forma mais grosseira de estupidez. Enquanto formos capazes de ser incitados através do patriotismo, nós inevitavelmente cederemos a uma reação falsa; e a partir disso surgirão inúmeros problemas. Se você questionar profundamente toda a ideia do nacionalismo e aquisitividade, então você nunca perguntará se a guerra é natural. Há alguns que são contra o que eu digo porque acham que seus interesses estão sendo perturbados; e outros ficam felizes quando falo contra o nacionalismo somente porque eles têm interesses em outros países.  

Para viver de forma inteligente sem as distinções de nacionalidades, classes, sem as divisões que as religiões criam entre os homens, vocês devem se libertar da ganância como indivíduos. Isso exige grande conscientização, interesse e ação da sua parte. Enquanto o indivíduo não estiver livre da busca pela segurança pessoal, haverá sofrimento, guerras e confusão.

Pergunta: Você nos promete um novo paraíso na Terra, mas ele é inalcançável. Você não acha que precisamos de soluções imediatas e não de esperanças distantes? O comunismo universal não seria a solução imediata?

Krishnamurti: Eu não estou prometendo a você um futuro paraíso na Terra, mas estou dizendo que você pode fazer deste mundo um paraíso através do seu próprio despertar e ação inteligentes, através do seu próprio questionamento dessas coisas falsas ao seu redor. Nenhum sistema salvará o homem, mas apenas sua própria inteligência voluntária. Se você meramente aceita um sistema, você se torna um escravo dele. Mas se a partir do seu próprio sofrimento, se a partir do seu próprio questionamento desses valores e tradições, você começar a despertar a verdadeira inteligência, então você criará aquilo que não pode explorar o homem.

Senhores, o que está impedindo cada um de nós de viver de forma inteligente, humana e sagrada? Cada um de nós busca a imortalidade, a segurança em outro mundo, portanto as religiões se tornam uma necessidade com todas as suas explorações, dominações e medos. E aqui neste mundo, nós buscamos segurança de um tipo diferente, portanto construímos um sistema implacável e competitivo de guerras, distinções de classe e todo o resto. Vocês, como indivíduos, criaram esta agonia de distinção e sofrimento; e vocês, como indivíduos, terão que alterá-la. Mas se vocês apenas esperarem que um grupo altere as condições atuais, então vocês não perceberão o êxtase da profunda realização.

Portanto, o que trará ao mundo uma condição feliz e inteligente é o seu próprio despertar, o seu questionamento intenso dos valores, do qual somente surge a ação. Quando vocês, como indivíduos, começarem a compreender o verdadeiro significado da vida através das ações, então haverá o paraíso na Terra.  

Pergunta: Você acredita na imortalidade da alma?

Krishnamurti: A ideia da alma é baseada na autoridade e na esperança. Por favor, antes que eu entre mais no assunto, não fique na defensiva. Estamos tentando descobrir o que é verdade, não o que é tradicional, não o que você acredita; portanto, precisamos primeiro investigar se existe tal coisa como a alma. Para discernir, você deve examinar sem uma ideia preconcebida, seja a favor ou contra.

Nós criamos, através do nosso desejo de imortalidade, a ideia da alma. Como achamos que não conseguimos compreender este mundo, com todas as suas agonias, misérias e explorações, nós queremos viver em outro mundo mais plenamente, mais completamente. Nós pensamos que deva haver alguma outra entidade que seja mais espiritual do que isso. A ideia da alma é baseada fundamentalmente na continuidade egoísta.

Agora, a realidade ou a Verdade ou Deus, ou qualquer outro nome que se queira dar, não é uma consciência egoísta e pessoal. Quando você busca segurança, continuidade, você pensa na alma como algo diferente da realidade. Tendo criado essa separação, você pergunta: “Ela é imortal?” Quando a mente está livre da sua consciência limitada com seu desejo de continuidade, então há imortalidade, não da continuidade pessoal e individual, mas da vida.

A ilusão pode se dividir em muitas, mas a Verdade não. Ao criar ilusões, a mente se divide em permanente, que ela chama de alma, e impermanente, a existência transitória. Essa divisão apenas cria mais ilusões.

Quando a mente está livre de todas as limitações, então existe imortalidade.  

Mas você tem que discernir quais são as limitações que impedem a mente de viver completamente. O próprio desejo de continuidade é a maior das limitações. Esse desejo é o resultado da memória, que age como um guia, como um aviso de proteção contra a vida, contra a experiência. A partir daí nasce a força que faz você imitar, se conformar, se submeter à autoridade e, portanto, há medo constante. Tudo isso compõe a ideia do “eu” que anseia por continuidade. Quando a mente está livre desse egoísmo, que se expressa de muitas maneiras, então há a realidade ou chame-a como quiser. Quando existe esse senso de divindade, você não pertence a nenhuma religião, a nenhum grupo de pessoas, a nenhuma família. É somente quando você perde esse senso de divindade que você se torna religioso e se submete a todos os absurdos e crueldades, à exploração e ao sofrimento. Enquanto a mente não for vulnerável ao movimento, à correnteza rápida da vida, não poderá haver a realidade. A mente deve estar completamente nua, desprotegida para seguir os caminhos da Verdade.

19 de julho de 1935.