https://jkrishnamurti.org/content/buenos-aires-2nd-public-talk-15th-july-1935

                                                                                                                             Segunda Palestra em Buenos Aires

Amigos, muitas perguntas foram entregues, e antes de responder algumas delas, eu gostaria de fazer uma breve palestra introdutória.

Não creio que qualquer problema humano possa ser resolvido isoladamente, por si só. Cada um de nós tem muitos problemas, muitas dificuldades, e tentamos lidar com eles de forma exclusiva, não como parte de um todo integral. Se temos um problema político, tentamos resolvê-lo separado, digamos, do problema da religião. Ou se há um problema religioso individual tentamos resolvê-lo separado do problema social e assim por diante. Ou seja, há problemas individuais e, ao mesmo tempo, coletivos que tentamos lidar isoladamente. Ao fazermos isso só criamos mais confusão e miséria. Ao resolvermos apenas um problema isoladamente, nós criamos outros e, portanto, a mente fica presa em uma rede de problemas não resolvidos.

Agora vamos compreender o problema que deve estar na mente da maioria das pessoas, o da realização individual e do trabalho coletivo. Se o trabalho coletivo se torna obrigatório, como ele está se tornando, e cada indivíduo é forçosamente puxado para ele, então a realização individual desaparece e cada um se torna meramente um escravo de uma ideia coletiva ou de um sistema coletivo autoritário. Portanto, a questão é: como podemos promover um trabalho coletivo e, ao mesmo tempo, concretizar a realização individual? Caso contrário, como eu disse, nos tornaremos meras máquinas, engrenagens que funcionam automaticamente. Se pudermos compreender o profundo significado da realização individual, então o trabalho coletivo não será uma força destrutiva ou um impedimento à inteligência.

Cada um deve descobrir a inteligência por si mesmo, cuja expressão será a verdadeira realização. Se não fizermos isso, se apenas seguirmos um plano estabelecido, então não haverá uma realização individual, mas será apenas uma conformidade através do medo. Se eu estabelecesse um plano ou lhe desse um sistema pelo qual você pudesse, através da imitação, chegar à realização, isso não seria uma realização, seria apenas um ajustamento a um padrão específico. Por favor, vejam esse ponto muito claramente, pois caso contrário vocês pensarão que estou apenas destruindo. Se você apenas imitar não haverá realização. A constante conformidade com um molde particular é a base do nosso pensamento religioso e da nossa ação moral. E viver não é mais uma completa e profunda realização, uma compreensão integrada da vida, mas meramente a conformidade com um certo sistema através do medo e da compulsão. Esse é o início da autoridade.

Para realizar deve haver grande inteligência. Essa inteligência é diferente do conhecimento. Você pode ler muitos livros, mas isso não lhe dará inteligência. A inteligência só pode ser despertada através da ação, através da compreensão da ação como um todo integrado. Discutir e descobrir intelectualmente o que é inteligência seria, eu penso, um desperdício de tempo e energia, pois isso não aliviaria a carga da ignorância e da ilusão. Em vez de investigar o que é inteligência, vamos descobrir por nós mesmos quais são os obstáculos colocados na mente que impedem o pleno despertar da inteligência. Se eu desse uma explicação sobre o que é inteligência, e você concordasse comigo, sua mente faria disso um sistema bem definido, e através do medo se distorceria para se encaixar nesse sistema. Mas se cada um puder descobrir por si mesmo os muitos impedimentos colocados na mente, então através da consciência, não através da autoanálise, a mente começará a se libertar, despertando assim a verdadeira inteligência, que é a própria vida.

Agora, um dos maiores impedimentos colocados na mente é a autoridade. Por favor, compreenda todo o significado dessa frase e não pule para uma conclusão oposta. Por favor, não digam: “Devemos nos livrar da lei? Podemos fazer o que quisermos? Como podemos ser livres da moralidade e da autoridade?” A autoridade é muito sutil, seus caminhos são muitos. Sua influência penetrante é tão delicada, tão esperta que requer grande discernimento, não conclusões precipitadas e irrefletidas, para perceber seu significado.

Quando há uma compreensão profunda não há divisão da autoridade como externa e interna, aplicável à massa e a poucos, como imposta externamente e cultivada internamente. Mas, infelizmente, existe essa divisão entre autoridade externa e interna. A externa é a imposição dos padrões, tradições, ideais, que apenas agem como um cercado para restringir o indivíduo, tratando-o como um animal a ser treinado de acordo com certas exigências e condições. Você vê isso acontecendo o tempo todo na moralidade fechada das religiões, nos padrões dos sistemas e partidos. Como reação contra essa imposição de autoridade, nós desenvolvemos um guia interno, um sistema, uma disciplina de acordo com a qual tentamos agir e, portanto, forçamos a experiência a se encaixar nesse ritmo de esperanças e desejos autoprotetores.

Onde há autoridade, e um mero ajustamento a ela, não há realização. Cada indivíduo criou essa autoridade através do medo e do desejo de segurança. Você tem que compreender seu próprio desejo, do qual você é escravo e que está criando autoridade; você não pode simplesmente ignorá-lo. Quando a mente discerne o profundo significado da autoridade e se liberta do medo com suas influências sutis, então ocorre o surgimento da inteligência, que é a verdadeira realização.

Onde há inteligência, há verdadeira cooperação e não compulsão, mas onde não há inteligência, o trabalho coletivo se torna mera escravidão. O verdadeiro trabalho coletivo é o resultado natural da realização, que é inteligência. Ao despertar a inteligência, cada um ajuda a criar a oportunidade, o ambiente para que outros também se realizem.

Interrogante: Está sendo dito em alguns jornais e em outros lugares que você levou uma vida divertida e inútil; que você não tem nenhuma mensagem real, mas está apenas repetindo o jargão dos teosofistas que o educaram; que você está atacando todas as religiões com exceção da sua; que você está destruindo sem construir nada novo; que seu propósito é criar dúvida, perturbação e confusão na mente das pessoas. O que você tem a dizer sobre tudo isso?

Krishnamurti: Acho melhor responder à pergunta ponto a ponto. (Gritos da audiência: “Isso é uma infâmia! A pergunta é difamatória!”) Senhores, um momento. Por favor, não pensem que fui insultado, e que vocês têm que me defender. (Aplausos)

Alguém disse que levei uma vida divertida e inútil. Receio que ele não possa julgar. Julgar o outro é totalmente falso, pois julgar significa que sua mente é escrava de um padrão específico. De fato, feliz ou infelizmente, eu não levei uma vida dita divertida; mas isso não faz de mim um objeto de adoração. Eu digo que a tendência das pessoas de adorar o outro, não importa quem seja, destrói a inteligência. Compreender e amar o outro não pode ser incluído na adoração, que nasce do medo sutil. Somente uma mente limitada julgará o outro. E tal mente não consegue compreender a viva qualidade da vida.

Foi dito que não tenho nenhuma mensagem real, mas estou “apenas repetindo o jargão dos teosofistas que me educaram”. De fato, não pertenço à Sociedade Teosófica nem a nenhuma outra sociedade. Pertencer a qualquer organização religiosa é prejudicial à inteligência. (Objeções da audiência) Senhores, esse é o meu pensamento. Vocês não precisam concordar; mas precisam descobrir se o que eu digo é verdade e não apenas contestar. Acontece que quando falo na Índia, eles me dizem que estou ensinando hinduísmo, quando falo nos países budistas, eles dizem que o que falo é budismo e os teosofistas e outros dizem que estou explicando novamente suas doutrinas. O que importa é que vocês que estão ouvindo compreendam o significado do que estou dizendo, não se alguém acha que estou repetindo o jargão de uma sociedade específica. Através do seu próprio sofrimento, através da sua própria compreensão da ação surge a verdadeira inteligência, que é a verdadeira realização. Portanto, o que é de grande importância não é se pertenço a alguma sociedade ou se estou apenas repetindo velhas ideias, mas que você compreenda profundamente o significado das ideias que apresentei, completando-as, portanto, na ação. Então você descobrirá por si mesmo se o que estou dizendo é verdadeiro ou falso, se tem algum valor essencial na vida. Infelizmente, somos muito propensos a acreditar em qualquer coisa que aparece impressa. Se você realmente puder pensar em uma ideia completamente, então você descobrirá a verdadeira beleza da ação, da vida.

Foi dito que estou atacando todas as religiões com exceção da minha. Eu não pertenço a nenhuma religião. Para mim, todas as religiões são apenas reações defensivas contra a vida, contra a inteligência.

O interrogante sugere que meu propósito é criar dúvida, perturbação e confusão na mente das pessoas. Agora, você precisa da pomada purificadora da dúvida para compreender; caso contrário, você meramente se tornará escravo de interesses constituídos, sejam eles da religião organizada ou do dinheiro e tradição social. Se você começar a questionar verdadeiramente os valores que agora o cercam e o prendem, embora isso possa causar confusão e perturbação, se você persistir em compreendê-los profundamente na ação, então haverá clareza e felicidade. Mas a clareza, ou a compreensão, não surge superficialmente, artificialmente; é preciso questionamento profundo.

A dúvida é o despertador da inteligência, nascida do sofrimento. Mas o homem cuja mente está presa ao vício do interesse constituído, do poder e da exploração, declara que a dúvida é perniciosa, um obstáculo que causa confusão e que gera destruição. Se você realmente deseja despertar a inteligência, você precisa começar a compreender o significado dos valores através da dúvida e do sofrimento. Se você quiser perceber o movimento da vida, da realidade, a mente deve se despojar de todos os valores autodefensivos.

Interrogante: Está claro para mim que você está determinado a destruir todos os nossos ideais mais apreciados. Se eles forem destruídos, a civilização não entrará em colapso e o homem não retornará à selvageria?

Krishnamurti: Em primeiro lugar, eu não posso destruir os ideais que vocês criaram. Se eu pudesse destruí-los, vocês criariam outros no lugar e, portanto, seriam prisioneiros deles. O que precisamos descobrir não é se a destruição dos ideais resultará em selvageria, mas se os ideais realmente ajudam o homem a viver de forma completa e inteligente. Não existe selvageria, caos, miséria, exploração, guerra apesar dos seus ideais, religiões e moralidade fechada? Portanto, vamos descobrir se os ideais são uma ajuda ou um obstáculo. Para compreender isso, sua mente não pode ser preconceituosa ou ficar na defensiva.

Quando falamos de ideais, nos referimos àqueles pontos de luz pelos quais buscamos nos guiar através da confusão e do mistério da vida. Nós queremos dizer por ideais aquelas concepções futuras que ajudarão o homem a se orientar através do caos da existência presente. O desejo sutil por ideais e sua permanência indica que você deseja atravessar o oceano da vida sem sofrimento. Como você não compreende completamente o presente, você deseja ter guias na forma de ideais. Então você diz: ”Como a vida é conflito, como há tanta miséria e sofrimento nela, os ideais me darão encorajamento e esperança”. Portanto, os ideais se tornam uma fuga do presente. Sua mente e seu coração são paralisados e sobrecarregados por eles, dando a você um meio sutil de escapar do presente sempre vivo, encobrindo e evitando assim o conflito e o sofrimento do agora. Assim, gradualmente, você passa a viver em teorias e não consegue compreender a realidade.

Deixe-me dar um exemplo que espero que esclareça o que quero dizer. Como cristãos, vocês professam amar o próximo. Esse é o ideal. Agora, o que acontece na realidade? O amor não existe, temos medo, dominação, crueldade e todos os horrores e absurdos do nacionalismo e da guerra. Na teoria é uma coisa, mas na realidade é exatamente o oposto. Mas se você deixar de lado por um momento seus ideais e realmente confrontar a realidade, se em vez de viver em um futuro romântico você encarar sem ilusões o que está sempre acontecendo, dedicando toda sua mente e coração a isso, então você agirá e conhecerá o movimento da realidade.

Ora, você está confundindo realidade com teorias. Você tem que separar o real do teórico, das esperanças e anseios. Quando você é confrontado com a realidade, há ação, mas se você escapar para ideais, para a segurança da ilusão, então você não agirá. Quanto maior o ideal, maior é o seu poder de manter o homem em uma ilusão, em uma prisão. É somente compreendendo a vida, com todo o seu sofrimento, alegria e movimento profundo, que a mente se liberta das ilusões e ideais.

Quando a mente está mutilada pelas esperanças e anseios, que se tornam ideais, ela não consegue compreender o presente. Mas quando a mente começa a se libertar dessas esperanças e ilusões futuras, então a ação despertará aquela inteligência que é a própria vida, o devir eterno.

Interrogante: Sou profundamente interessado em suas ideias, mas minha família e o sacerdote se opõem a mim. Qual deve ser minha atitude em relação a eles?

Krishnamurti: Se você deseja compreender a Verdade, a vida, então a família como influência, como abrigo não existe. E o sacerdote, com imposição e exploração sutil, deixa de ser fator determinante na vida. Portanto, é você mesmo quem deve responder a essa pergunta. Se você quiser compreender a beleza da vida e viver em êxtase e de forma profunda, sem essa criação contínua de limitações, então você deve estar livre das crenças organizadas, como na religião com sua exploração, e da possessividade da família com seus abrigos espertos e autodefensivos – o que não significa jogar fora todas as coisas e se tornar uma pessoa licenciosa. Se você deseja compreender profundamente e viver de forma inteligente com realização, então a família, o sacerdote ou a opinião pública não podem ser obstáculos.

O que é a opinião pública, o que são sacerdotes, o que é a família quando você realmente considera isso? Para discernir, cada um não precisa ficar sozinho, sem apoio? Isso não significa que você não pode amar, que não pode casar e ter filhos. Por causa do seu próprio desejo de segurança e conforto, você começa a criar um ambiente que influencia, limita e domina sua mente e seu coração através do medo. Um homem que quiser compreender a Verdade deve estar livre do desejo de segurança e conforto.

Interrogante: Alguns dizem que você é o Cristo, outros que você é o Anticristo. De fato, o que você é?

Krishnamurti: Não creio que importe muito o que eu sou. O que importa é se você está compreendendo de forma inteligente o que estou dizendo. Se você tem um profundo apreço pela beleza pouco importa saber quem pintou o quadro ou escreveu o poema. (Aplausos e objeções) Senhores, não estou fugindo da pergunta, porque acho que não importa o que eu sou. Pois se eu começasse a afirmar ou negar, eu me tornaria uma autoridade. Mas se você, através do seu próprio discernimento, compreender e viver o que é verdadeiro e vital no que estou dizendo, então haverá realização. Afinal, o que mais importa é que você viva plenamente, completamente, não quem eu sou.

Interrogante: Existe alguma diferença entre o verdadeiro sentimento religioso e a religião como crença organizada?

Krishnamurti: Antes de responder essa pergunta, precisamos entender o que queremos dizer com crença organizada. Uma estrutura de credos, dogmas e crenças baseadas na autoridade, com sua pompa, sensação e exploração – isso eu chamo de religião organizada com seus muitos interesses constituídos. E existem aqueles sentimentos e reações pessoais que a pessoa chama de experiências religiosas. Você pode não pertencer a uma religião organizada com todas as suas influências sutis de autoridade, imposição e medo, mas pode ter experiências pessoais que você chama de sentimento religioso. Não preciso explicar novamente como a crença organizada, isto é, a religião, mutila fundamentalmente o pensamento e o amor, pois já abordei esse assunto de forma bastante aprofundada.

Essas experiências que chamamos de religiosas podem ser o resultado de uma ilusão; então temos que entender como elas surgem. Se há conflito, sofrimento, a mente naturalmente busca conforto. Em busca do conforto longe do sofrimento, a mente cria ilusões das quais surgem certas experiências e sentimentos, que ela chama de religiosos ou por algum outro termo. Ao compreender e se libertar da causa do sofrimento, a mente perceberá, não uma experiência objetiva que atua sobre uma mente limitada e subjetiva, mas aquele movimento do qual ela não está separada, da própria vida, da realidade. Como a maioria das pessoas sofre e tem experiências religiosas de algum tipo, essas experiências são meramente uma fuga da causa do sofrimento para uma ilusão que assume, através do contato e do hábito constantes, uma realidade. Você precisa descobrir por si mesmo se o que você chama de experiência religiosa é uma fuga do sofrimento ou a libertação da causa do sofrimento e, portanto, o movimento da realidade. Se você busca experiência religiosa, então ela é falsa, porque você está apenas desejando escapar da vida, da realidade. Mas quando a mente se liberta do medo e de suas muitas limitações, então ocorre o fluxo do êxtase da vida.

Interrogante: Como posso me livrar do medo?

Krishnamurti: Acho que o interrogante quer saber como se libertar da causa profunda e significativa do medo.

Para ficar verdadeiramente livre do medo, você deve perder todo o senso de egoísmo. E isso é algo muito difícil de fazer. O egoísmo é tão sutil, ele se expressa de tantas maneiras que quase não temos consciência dele. Ele se expressa através da busca por segurança, seja neste mundo ou em algum outro mundo chamado além. Ele anseia por segurança agora e no futuro e, portanto, impede a inteligência e a realização. Enquanto esse desejo por segurança existir, haverá medo. Uma mente que busca imortalidade, continuidade de sua própria consciência limitada, cria medo, ignorância e ilusão. Se a mente puder se libertar do desejo de segurança, então o medo cessará. E para descobrir se a mente está buscando segurança, ela deve se tornar totalmente consciente.

15 de julho de 1935