https://jkrishnamurti.org/content/nichteroy-public-talk-28th-may-1935

                                                                                                                                        Palestra em Niterói

Amigos, a maioria das pessoas em todo o mundo, não importa onde estejam, está descontente, perturbada pelas condições existentes e está tentando encontrar uma saída duradoura para essa miséria e caos. Cada especialista oferece sua forma particular de solução e, como geralmente acontece, ele contradiz outros especialistas. Assim, cada especialista forma um grupo em torno de sua teoria e, portanto, o propósito de ajudar a humanidade é esquecido, enquanto discussões e disputas acontecem entre várias partes e especialistas.

Não sendo especialista, não estou propondo um novo sistema ou uma nova teoria para a solução dos muitos problemas; mas o que eu gostaria de fazer é despertar a inteligência individual para que cada um, em vez de se tornar escravo de um sistema ou de um especialista, comece a agir de forma inteligente, porque somente assim pode surgir uma ação cooperativa e construtiva. Se cada um de nós for capaz, em todas as circunstâncias, de discernir por si mesmo o que é a verdadeira ação, então não haverá exploração, então cada um se realizará verdadeiramente e viverá uma vida harmoniosa e completa.

Naturalmente, o que eu digo se aplica àquelas pessoas que estão descontentes, que estão revoltadas, que estão tentando encontrar uma maneira inteligente de agir. Isso se aplica àqueles que estão sofrendo, que desejam se libertar de toda exploração.

Todos estão preocupados com esse despertar através do conflito e da luta entre si e o grupo, entre si e outro indivíduo. Existe uma autoridade estabelecida, seja antiga ou moderna, que está continuamente forçando, compelindo o indivíduo a funcionar de uma determinada maneira. Temos todo um sistema de pensamento, cultivado ao longo dos tempos, para o qual nós contribuímos, em cujo movimento implacável cada um, consciente ou inconscientemente, está preso. Portanto, há uma consciência coletiva e outra individual, às vezes correndo paralelamente, muitas vezes diametralmente opostas. Essa oposição é o despertar do sofrimento.

Nosso conflito, insatisfação e luta é entre a autoridade estabelecida e o indivíduo; entre aquilo que tem séculos de idade, a tradição, e o desejo ardente por parte do indivíduo de não ser sufocado pela tradição, pela autoridade, mas de se realizar; pois somente na realização existe felicidade criativa.

No mundo da ação, que chamamos de mundo material, mundo econômico, mundo da sociologia, existe um sistema que impede a verdadeira realização do indivíduo. Ainda que cada um pense que está agindo individualmente nesse sistema atual, se você realmente examinar, verá que está agindo apenas como um escravo, como uma máquina da ordem estabelecida. Esse sistema tem em si a distinção de classes, baseada na exploração aquisitiva, levando ao nacionalismo e às guerras. Ele coloca os meios de acumulação de riqueza nas mãos de poucos. Se o indivíduo for capaz de se expressar, de se realizar, ele estará em constante revolta contra esse sistema; porque, se você examiná-lo, verá que ele é fundamentalmente estúpido e cruel.

Se o indivíduo quiser compreender esse sistema externo, ele deve primeiro tomar consciência da prisão em que está preso, prisão que ele criou através de sua própria ganância agressiva, e começar a derrubá-la por meio de seu próprio sofrimento e inteligência.

Há um sistema interno, igualmente cruel e explorador, que chamamos de religião. Eu quero dizer por religião o sistema de pensamento organizado que prende o indivíduo no ritmo de um padrão particular. Afinal, o cristianismo, o hinduísmo, o budismo são muitos conjuntos de crenças, ideias e preceitos que se tornaram amadurecidos pelo medo e pela tradição, que forçam o indivíduo, por meio da fé e da esperança ilusória, a pensar e agir de acordo com uma linha específica, de forma cega e estúpida, com a ajuda de sacerdotes exploradores. Cada religião do mundo, com seus interesses particulares, crenças, dogmas e tradições, está separando o homem do homem, assim como o nacionalismo e as classes sociais estão fazendo. É totalmente fútil esperar que haja uma religião no mundo, seja o hinduísmo ou o budismo ou o cristianismo, embora esse seja o sonho dos missionários. Mas nós podemos abordar toda essa ideia de religião de um ponto de vista totalmente diferente.

Por favor, ouça com paciência e sem preconceitos o que tenho a dizer, porque religião, assim como política, é um assunto muito delicado. Se uma pessoa é religiosa, ela geralmente se torna tão dogmática, tão violenta, quando alguém começa a questionar toda a estrutura da religião, que ela é incapaz de pensar de forma clara e direta. Portanto, eu peço àqueles que estão me ouvindo, talvez pela primeira vez, que ouçam sem qualquer antagonismo e com o desejo de descobrir o significado do que estou dizendo.

Se pudermos compreender a vida e viver aqui, neste mundo, com amor, de forma suprema e inteligente no presente, então a religião se tornará vã e sem valor. Como os exploradores nos dizem constantemente que não podemos fazer isso sozinhos, passamos a acreditar de que precisamos ter um sistema a seguir. Assim, sem receber ajuda para se libertar, o homem é encorajado a seguir um sistema e é mantido, através do medo, prisioneiro da autoridade que ele espera que o guie através dos vários conflitos e perplexidades da vida.

Livrar-se meramente da ideia de religião, sem uma compreensão profunda, naturalmente levará a atividades, reações e pensamentos superficiais. Se formos realmente capazes de viver com profunda inteligência, então não criaremos uma fuga das nossas misérias e lutas, que é o que a religião se tornou. Ou seja, porque achamos a vida tão difícil, com tantos problemas e misérias aparentemente intermináveis, queremos uma fuga, e as religiões oferecem um método muito conveniente de escape. Todos os domingos as pessoas vão à igreja para rezar e praticar o amor fraternal, mas no resto da semana elas se envolvem em exploração e crueldade implacáveis, cada uma buscando sua própria segurança. Portanto, as pessoas estão vivendo uma vida hipócrita: domingo para Deus e o resto da semana para autossegurança. Assim, usamos a religião como uma fuga conveniente à qual recorremos em momentos de dificuldade e miséria.

Assim, através desse sistema que é chamado religião, com suas crenças e ideais, você encontrou uma fuga autorizada da batalha incessante atual. Afinal, os ideais, que as religiões e as organizações religiosas oferecem, nada mais são do que fugas do presente.

Agora, por que nós queremos ideais? É porque como não conseguimos compreender o presente, a existência cotidiana com suas crueldades, sofrimentos e feiuras, queremos nos guiar através da vida por algum ideal. Portanto, os próprios ideais se tornam, fundamentalmente, uma fuga do presente. Nossa mente está presa na criação de muitas fugas do presente, que por si só é o eterno. Estando aprisionada nessas fugas, a mente naturalmente estará em constante batalha com o presente. Portanto, em vez de procurarmos novos métodos, novas prisões, nós devemos compreender por nós mesmos como a mente cria para si essas vias de fuga. Então a questão é: você está satisfeito em viver nesta prisão de ilusão, em viver nesta prisão de faz de conta com suas estupidezes e sofrimentos? Ou você está, como indivíduo, insatisfeito, revoltado? Você está disposto a se desvencilhar desse sistema e, portanto, a descobrir por si mesmo o que é verdadeiro? Se você estiver meramente satisfeito em permanecer na prisão, então a única coisa que irá despertá-lo será o sofrimento; mas quando o sofrimento vier, você buscará fugir dele e, portanto, criará outra prisão. Assim você irá de um sofrimento a outro, apenas para entrar em uma escravidão maior. Mas se você perceber a total futilidade de todos os tipos de fuga, seja através dos ideais ou crenças, então discernirá, com intensa consciência, o verdadeiro significado das crenças, tradições e ideais. Ao compreender o seu significado profundo, a mente, livre de toda ilusão, é capaz de discernir a Verdade, o eterno.

Portanto, em vez de meramente procurar novos sistemas, novos métodos para substituir o atual modo de pensamento, de exploração, de fugas sutis, tome a realidade como ela é, com todas as suas explorações, crueldades, bestialidades, e compreenda todo o significado desse sistema. E isso só pode ser feito quando há grande sofrimento. A partir desse intenso questionamento e investigação, você perceberá, por si mesmo, a realização de toda a existência humana, que é a inteligência. Sem essa realização, a vida se torna superficial, vazia e o sofrimento é apenas uma recorrência constante, sem fim.

Portanto, se aqueles que estão sofrendo tentarem compreender toda a profundidade do presente sem qualquer medo ou desejo de fuga, então, sem a necessidade de sacerdotes e salvadores, haverá a realização daquilo que é duradouro, daquilo que não pode ser medido por palavras.

Interrogante: Se a inteligência da maioria das pessoas é tão limitada que elas não conseguem encontrar a Verdade por si mesmas, os Mestres e os professores não são necessários para lhes mostrar o caminho?

Krishnamurti: Se apenas considerarmos que os ignorantes precisam dos inteligentes, então manteremos os ignorantes para sempre como ignorantes. Se você pensa que um homem estúpido precisa de um guia, de um Mestre, então você criará circunstâncias que o manterá na estupidez. Se os inteligentes perceberem a necessidade de ajudar os estúpidos não em relação a algum sistema ou crença ou dogma específico, mas para serem inteligentes, então os ignorantes não serão explorados. Mas a questão não é se o homem estúpido precisa de Mestres, de salvadores, mas se vocês precisam deles. Ao questionarem verdadeiramente essa necessidade, vocês descobrirão que ninguém pode salvá-los, que ninguém pode lhes dar compreensão; porque a compreensão reside no seu próprio discernimento. A inteligência não é um presente de Mestres e professores, mas é fruto da sua própria percepção e ação criativa.

Interrogante: O homem não pode ser libertado através da ciência?

Krishnamurti: A ciência pode salvar o homem de muitos sofrimentos, mas há uma grande quantidade de sofrimento, miséria e exploração, embora a ciência esteja muito avançada. Cada um conhece a bestialidade e a feiúra da guerra, o resultado de interesses particulares e do nacionalismo, de que forma a ciência impediu esse sofrimento, essa doença? É o coração do homem que tem de ser mudado, mas por que esperar por um dia futuro quando está agora ao seu alcance provocar uma alteração sã e inteligente?

Interrogante: Eu gostaria de saber se precisamos rezar. E como rezar?

Krishnamurti: Senhor, a ideia fundamental da oração não é buscar ajuda e compreensão além de nós mesmos? Se for assim, estamos dependendo de algo, o que nos torna mais fracos em nossa própria inteligência.

Interrogante: A alma é uma realidade?

Krishnamurti: Novamente, eu gostaria de pedir ao público que ouça sem preconceitos, sem fanatismo esse ponto. Quando você fala sobre a “alma”, você quer dizer algo entre o material e o espiritual, entre o corpo e Deus. Portanto, você dividiu a vida em matéria, espírito e Deus. Não é isso? Se me permitem dizer isto, vocês que falam sobre “alma” não sabem nada sobre isso, vocês estão aceitando isso apenas com base na autoridade ou é baseado em alguma esperança, em algum desejo não realizado. Você aceitou com base na autoridade muitas ideias fundamentais, assim como aceitou a “alma” como uma realidade.

Por favor, considere o que vou dizer sem qualquer preconceito a favor ou contra a ideia de alma e sem quaisquer ideias preconcebidas para descobrir o que é verdadeiro. A única realidade da qual estamos plenamente cientes, com a qual temos de nos preocupar, é o sofrimento. Estamos conscientes dessa constante não realização, limitação, incompletude que causa conflito e sofrimento. Essa consciência do sofrimento é a única realidade a partir da qual você pode começar. E é somente compreendendo a causa do sofrimento, e libertando-se dela de forma inteligente, que surge o êxtase da realidade. Quando a mente se desvencilha de todas as ilusões e esperanças, então surge a bem-aventurança da realidade.

Através de todo esse conflito e miséria, a pessoa sente que deve haver uma realidade, um Deus, uma inteligência infinita ou como quer que se possa chamá-la. Esse sentimento pode ser apenas uma reação a essa agonia e, portanto, irreal, e sendo assim a busca por essa realidade levará a ilusões cada vez maiores. Ou esse sentimento pode ser o desejo intrínseco de descobrir a Verdade, que não pode ser medida ou sistematizada. Se pudermos descobrir o que cria o conflito e quem é o criador do sofrimento, então, ao desenraizar a causa, poderá haver a verdadeira felicidade do homem. Essa batalha quase incessante, esse sofrimento aparentemente interminável, é criada por aquela consciência limitada que chamamos de “eu”. Criamos ao nosso redor muitos valores falsos, ideais falsos dos quais a mente se tornou escrava. Há uma batalha constante entre essas ilusões e o presente. E sempre haverá conflito enquanto existirem essas ilusões autoprotetoras. Esse conflito cria em nossas mentes a ideia do particular, do “eu”. Assim, dessa consciência limitada surge a divisão como o “eu”, o impermanente, e o “eu”, o permanente, o eterno. Quando a mente estiver totalmente livre das ilusões autoprotetoras e dos falsos valores, que são a causa da consciência limitada e de suas muitas estupidezes, então ela perceberá por si mesma se a Verdade existe ou não.

Se eu meramente dissesse que existe uma alma, eu apenas acrescentaria outra crença às suas muitas crenças. Portanto, qual valor isso teria? Considerando que a única realidade da qual temos consciência é essa luta, esse sofrimento, essa exploração da qual nos tornamos escravos. E ao nos libertarmos disso de forma inteligente, sem fugir, discerniremos o duradouro no transitório, o real na ilusão.

28 de maio de 1935.