https://jkrishnamurti.org/content/sao-paulo-2nd-public-talk-24th-april-1935

                                                                                                                               2ª palestra em São Paulo

Amigos, muitas perguntas me foram feitas sobre o futuro pessoal dos indivíduos e suas esperanças, se eles terão sucesso em determinados negócios, se devem deixar este país e se estabelecerem na América do Norte, quem é a pessoa certa para se casar e assim por diante. Eu não posso responder a essas perguntas porque não sou cartomante. Sei que são perguntas reais e perturbadoras, mas elas devem ser resolvidas por cada um de nós.

Dentre as inúmeras perguntas que me foram feitas, escolhi aquelas que são representativas. Mas sinto que será inútil e uma perda de tempo para você e para mim se o que eu disse e o que vou dizer for aceito por você como uma teoria filosófica com a qual a mente pode se divertir. Tenho algo vital a dizer que se aplica à vida, algo que, quando compreendido, o ajudará a resolver os muitos problemas do seu dia a dia.

Eu não estou respondendo a estas questões de algum ponto de vista específico, porque sinto que todos os problemas devem ser tratados não separadamente, mas como um todo. Se pudermos fazer isso, nossos pensamentos e ações se tornarão sãos e equilibrados.

Por favor, não descarte algumas destas questões como sendo burguesas ou feitas pela classe abastada. São questões humanas e assim devem ser consideradas, não como pertencentes a alguma classe específica.

Pergunta: O que você pensa sobre mediunidade e comunicação com os espíritos dos mortos?

Krishnamurti: Você pode rir disso ou levar a sério. Em primeiro lugar, não vamos discutir se os espíritos existem ou não, mas vamos considerar o desejo que nos leva a comunicar com eles, porque essa é a parte mais importante da questão.

Para a maioria das pessoas que praticam esse tipo de coisa, em sua comunicação com os mortos há o desejo de serem guiados, de que lhes digam o que fazer porque elas estão em constante incerteza no que diz respeito às suas ações e esperam que, ao se comunicarem com os mortos, elas encontrem orientação, poupando assim do trabalho de pensar. Portanto, o desejo é de orientação, de direcionamento para que não cometam erros, sofram. Essa é a mesma atitude que alguns têm em relação aos mestres, aqueles seres que são considerados mais avançados e, portanto, capazes de dirigir o homem através dos seus mensageiros e assim por diante.

A adoração da autoridade é a negação da compreensão. O desejo de não sofrer gera exploração. Portanto, esta busca por autoridade destrói a completude da ação. E a orientação gera irresponsabilidade, porque existe um forte desejo de navegar pela vida sem conflito, sem sofrimento. Por essa razão temos crenças, ideais, sistemas, na esperança de que a luta e o sofrimento possam ser evitados. Mas essas crenças e ideais, que se tornaram fugas, são a própria causa do conflito, criando maiores ilusões, maior sofrimento. Enquanto a mente procurar conforto através da orientação, através da autoridade, a causa do sofrimento, a ignorância, nunca poderá ser dissolvida.

Pergunta: Para alcançar a Verdade é preciso abster-se do casamento e da procriação?

Krishnamurti: Veja, a verdade não é um fim, uma finalidade que pode ser alcançada através de certas ações. Ela é aquela compreensão que nasce do contínuo ajustamento à vida, que demanda grande inteligência; e como a maioria das pessoas não é capaz desse ajustamento indefeso ao movimento da vida, elas criam certas teorias e ideais que esperam que as guiem. Assim, o homem é mantido no molde de tradições, preconceitos e moralidades obrigatórias, ditado pelo medo e pelo desejo de autopreservação. Isso acontece porque ele não é capaz de discernir continuamente o significado da vida em seu constante movimento e, portanto, ele desenvolve certos “devo” e “não devo”. Uma vida completa e rica, com a qual quero dizer uma vida muito inteligente, não uma existência autoprotetora e defensiva, exige que a mente esteja livre de todos os tabus, medos e superstições, sem o “devo” e “não devo”. E isso só pode ocorrer quando a mente compreende totalmente o significado e a causa do medo.

Para a maioria das pessoas existe conflito, sofrimento e uma adaptação incessante no casamento; e para muitos o desejo de alcançar a verdade é apenas uma fuga dessa luta.

Pergunta: Você nega a religião, Deus e a imortalidade. Como pode a humanidade tornar-se mais perfeita e mais feliz sem acreditar nessas coisas fundamentais?

Krishnamurti: Isso é porque você acredita em Deus, na imortalidade. Há tanta miséria, sofrimento e exploração porque vocês acreditam nessas coisas. Apenas na completude da própria ação você pode descobrir se a verdade, a imortalidade existe, não através de alguma crença, não através da afirmação oficial de outra pessoa. Somente na completude da própria ação a realidade é revelada.

Agora, para a maioria das pessoas, a religião, Deus e a imortalidade são simplesmente um meio de fuga. A religião apenas ajudou o homem a escapar do conflito, do sofrimento da vida e, portanto, de compreendê-la. Quando você está em conflito com a vida, com seus problemas de sexo, exploração, ciúme, crueldade e assim por diante, como você não deseja compreendê-los fundamentalmente – pois para compreendê-los é preciso ação, ação inteligente, e como você não está disposto a fazê-la, você inconscientemente tenta fugir para os ideais, valores e crenças que foram transmitidos. Portanto, a imortalidade, Deus e a religião se tornaram apenas abrigos para uma mente que está em conflito.

Para mim, tanto o crente como o não-crente em Deus e na imortalidade estão errados, porque a mente não pode compreender a realidade até que esteja completamente livre de todas as ilusões. Só então você poderá afirmar, não acreditar ou negar, a realidade de Deus e da imortalidade. Quando a mente está totalmente livre dos muitos obstáculos e limitações criados pela autoproteção, quando ela está aberta, totalmente nua, vulnerável na compreensão da causa da ilusão autocriada, somente então todas as crenças desaparecem, dando lugar à realidade.

Pergunta: Você é contra a instituição da família?

Krishnamurti: Eu sou se a família for o centro da exploração, se for baseada nela. (Aplausos) Por favor, o que há de bom em apenas concordarem comigo? Vocês precisam agir para mudar isso. O desejo de perpetuação cria uma família que se torna o centro da exploração. Portanto, a pergunta é: podemos viver sem explorar? Não se a vida familiar é certa ou errada, não se ter filhos é certo ou errado, mas se a família, as posses e o poder não são o resultado do desejo de segurança, de autoperpetuação. Enquanto houver esse desejo, a família se tornará o centro da exploração. Poderemos algum dia viver sem exploração? Eu digo que podemos. Haverá exploração enquanto houver a luta pela autoproteção; enquanto a mente procurar segurança, conforto através da família, da religião, da autoridade, da tradição haverá exploração. E a exploração só cessa quando a mente discerne a falsidade da segurança e já não se deixa ludibriar pelo seu próprio poder de criar ilusões. Se você experimentar o que eu digo, então compreenderá que não estou destruindo o desejo, mas que você pode viver neste mundo com riqueza e sanidade, sem limitações e sofrimento. Você só pode descobrir isso experimentando, não negando, nem através da resignação ou da mera imitação. Onde a inteligência funciona – e a inteligência deixa de funcionar quando há medo e desejo por segurança – não há exploração.

A maioria das pessoas está esperando que ocorra uma mudança que altere milagrosamente este sistema de exploração. Elas estão esperando que as revoluções realizem suas esperanças, seus anseios; mas nessa espera elas estão morrendo lentamente. Eu penso que meras revoluções não mudarão os desejos fundamentais do homem. Mas se o indivíduo começar a agir com inteligência, sem compulsão, independentemente das condições presentes ou do que as revoluções prometem para o futuro, então haverá uma riqueza, uma plenitude cujo êxtase não pode ser destruído.

24 de abril de 1935.