https://jkrishnamurti.org/content/rio-de-janeiro-2nd-public-talk-17th-april-1935
2ª Palestra no Rio de Janeiro
Amigos, nesta breve palestra introdutória, antes de responder a algumas das perguntas que me foram colocadas, quero expressar algumas ideias que devem ser pensadas com inteligência crítica. Não quero entrar em detalhes, mas quando vocês refletirem sobre o que vou dizer e colocarem em ação, vocês verão sua importância prática neste mundo de caos cruel e aterrorizante.
A primeira coisa que temos de compreender é que enquanto existir uma distinção entre o indivíduo e o grupo, haverá conflito, exploração, sofrimento. O conflito no mundo é, na verdade, entre o indivíduo, que busca realização, e o grupo. Na expressão da sua força única como indivíduo, ele inevitavelmente entra em conflito com o grupo, e esse conflito apenas aumenta a divisão entre os dois. A mera imposição superficial de um sobre o outro, ou o extermínio de um pelo outro, não pode livrar o mundo da exploração e das crueldades repressivas.
Enquanto não compreendermos a verdadeira relação entre o indivíduo e o grupo, a sua verdadeira função entre os muitos, haverá uma guerra contínua. Para mim, essa distinção entre o indivíduo e o grupo é artificial e falsa, embora tenha assumido uma realidade. Enquanto não compreendermos verdadeiramente como a consciência do grupo surgiu, o que é o indivíduo e sua função, haverá um atrito contínuo.
Antes de responder às perguntas desta noite, quero tentar explicar o que quero dizer com indivíduo. A consciência do grupo é apenas a expansão da consciência do indivíduo, portanto vamos nos preocupar com o pensamento e com a ação do indivíduo. Embora o que eu disser possa parecer novo para você, por favor, examine-o sem preconceitos.
O indivíduo é o resultado do passado, expressando-se através do ambiente presente – o passado sendo aquilo que é herdado, a incompletude, e o presente é o que é criado pela incompletude. O passado nada mais é do que pensamentos, emoções e ações incompletas, ou seja, pensamentos e emoções, ou ações, condicionados, limitados pela ignorância.
Em outras palavras, se uma pessoa desenvolveu uma determinada formação através das tradições, do ambiente econômico, da hereditariedade, do treinamento religioso e está tentando se expressar por meio da limitação dessa formação, então suas ações, pensamentos e sentimentos serão limitados, condicionados naturalmente. Ou seja, sua mente está pervertida, distorcida pelo seu passado, e com essa limitação ela está tentando conhecer a vida e compreender suas experiências. Portanto, a ignorância é a acumulação dos resultados das ações através dos muitos obstáculos, cujos significados o indivíduo não compreendeu completamente. Esses obstáculos foram construídos pela mente para sua própria autoproteção.
Cada um está constantemente buscando e criando segurança para si mesmo e, portanto, toda sua reação diante da vida é de contínua autodefesa. Enquanto a mente e o coração procurarem medidas para se protegerem, através de ideais e valores defensivos, haverá ignorância, a qual impede a mente de agir inteiramente, completamente. E assim ela desenvolve sua própria particularidade a que chamamos de individualidade, a qual inevitavelmente entra em conflito com as muitas outras individualidades. Essa é a causa fundamental do sofrimento.
Agora, para mim, o verdadeiro significado da individualidade consiste em libertar a mente do passado, da ignorância com seu ambiente limitante. Nesse processo de libertação nasce a verdadeira inteligência, que sozinha libertará o homem do sofrimento, das crueldades e da exploração.
Portanto, quando a mente está livre do hábito e da tradição de buscar e criar valores para sua autoproteção através da acumulação, que é ignorância, e aborda a vida completamente, totalmente despida, livre, então existe o discernimento duradouro daquilo que é verdade.
Pergunta: É possível viver sem exploração individual e comercial?
Krishnamurti: A maioria de nós é tomada pela sensação de posse. Nós desejamos adquirir e, portanto, começamos a acumular cada vez mais pensando que, através da acumulação, encontraremos felicidade, segurança. Enquanto houver desejo acumulativo e aquisitivo haverá exploração. E só poderemos nos libertar da exploração quando começarmos a despertar a inteligência através da destruição de valores autoprotetores. Mas se tentarmos apenas descobrir quais são as nossas necessidades e nos limitarmos a elas, então a nossa vida se tornará pequena, superficial e mesquinha. Considerando que se vivêssemos de forma inteligente, sem acumulações autoprotetoras, não haveria exploração com suas muitas crueldades. Tentar resolver esse problema por meio do simples controle das condições econômicas ou através da mera renúncia me parece uma abordagem errada. É somente através da compreensão voluntária e inteligente da futilidade e da ignorância da autoproteção que poderemos nos libertar da exploração.
Despertar a inteligência é descobrir, através da dúvida e do questionamento, o verdadeiro significado dos valores que adquirimos, das tradições, sejam elas religiosas, sociais ou econômicas, que herdamos ou construímos conscientemente. Nesse questionamento, se for real e vital, há a descoberta inteligente das necessidades. Essa inteligência é a garantia da felicidade.
Pergunta: Devemos quebrar nossas espadas e transformá-las em relhas de arado mesmo que nosso país seja atacado por um inimigo? Não é nosso dever moral defender o nosso país?
Krishnamurti: Para mim, a guerra é fundamentalmente errada, seja defensiva ou agressiva. O sistema de ganância em que se baseia toda esta civilização cria distinções de classe, étnicas e nacionais naturalmente, conduzindo inevitavelmente à guerra, que pode ser chamada de ofensiva ou defensiva de acordo com os ditames dos líderes políticos e comerciais. Enquanto esse sistema econômico explorador existir haverá guerra. E o indivíduo que se depara com o problema de lutar ou não decidirá de acordo com sua ganância, que por vezes chama de patriotismo, ideais e assim por diante. Ou, compreendendo que todo esse sistema leva inevitavelmente à guerra, ele, como indivíduo, começará a se libertar inteligentemente desse sistema. E só isso é para mim a verdadeira solução.
Através da nossa ganância construímos, ao longo de muitos séculos, esse sistema esmagador de exploração que está destruindo todas as nossas sensibilidades, o nosso amor uns pelos outros. E quando perguntamos: “Não devemos lutar pelo nosso país, não é esse o nosso dever moral?” Há algo inerentemente errado, algo fundamentalmente cruel na própria pergunta. Para se libertar dessa estupidez extrema – a guerra – o homem precisa reaprender a pensar, pensar desde o início. Enquanto a humanidade estiver dividida pelas religiões, pelas seitas, credos, classes, pelas nacionalidades, haverá guerra, exploração, sofrimento. Só quando a mente começa a se libertar dessas limitações, somente quando a mente se derrama no coração é que existe a verdadeira inteligência, que é a única solução duradoura para as crueldades bárbaras desta civilização.
Pergunta: Como podemos ajudar melhor a humanidade a compreender e viver seus ensinamentos?
Krishnamurti: É muito simples: vivendo-os você mesmo. O que é que estou ensinando? Eu não estou lhe dando um novo sistema ou um novo conjunto de crenças; mas eu digo: olhem para a causa dessa exploração, falta de amor, medo, guerras contínuas, ódio, distinções de classe, divisão do homem contra o homem. A causa é, fundamentalmente, o desejo de cada um de se proteger através da aquisitividade, do poder. Todos nós desejamos ajudar o mundo, mas nunca começamos por nós mesmos. Queremos reformar o mundo, mas a mudança fundamental deve ocorrer primeiro dentro de nós mesmos. Portanto, comece a libertar a mente e o coração desse sentimento de possessividade. Isso exige não mera renúncia, mas discernimento, inteligência.
Pergunta: Qual é a sua atitude em relação ao problema do sexo, que desempenha um papel tão dominante na nossa vida quotidiana?
Krishnamurti: O sexo se tornou um problema porque não há amor. Não é isso? Quando realmente amamos não há problema, há um ajustamento, há uma compreensão. É somente quando perdemos o senso de verdadeira afeição, aquele amor profundo no qual não há sentido de possessividade que surge o problema do sexo. É somente quando nos entregamos completamente à mera sensação que surgem muitos problemas relativos ao sexo. Como a maioria das pessoas perdeu a alegria do pensamento criativo, elas naturalmente recorrem à mera sensação do sexo, o que se torna um problema que corrói suas mentes e corações. Enquanto você não começar a questionar e compreender o significado do ambiente, dos muitos valores que você construiu ao seu redor como autoproteção e que estão destruindo o pensamento fundamental e criativo, naturalmente você recorrerá a muitas formas de estímulo. Daí surgem inúmeros problemas para os quais não há solução, exceto a compreensão fundamental e inteligente da própria vida.
Por favor, experimentem o que estou dizendo. Comecem a descobrir o verdadeiro significado da religião, do hábito, da tradição, de todo esse sistema de moralidade que está continuamente forçando, compelindo vocês em uma direção particular. Comecem a questionar todo o seu significado sem preconceitos. Assim, vocês despertarão esse pensamento criativo que dissolve os muitos problemas nascidos da ignorância.
Pergunta: Você acredita em reencarnação? Ela é um fato? Você pode nos dar provas de sua experiência pessoal?
Krishnamurti: A ideia da reencarnação é tão antiga quanto as montanhas – a ideia de que o homem, através de muitos renascimentos, passando por inúmeras experiências, chegará finalmente à perfeição, à verdade, a Deus. Agora, o que é que renasce, o que é que continua? Para mim, aquilo que continua nada mais é do que uma série de camadas de memória, de certas qualidades, de certas ações incompletas, que foram condicionadas, impedidas pelo medo nascido da autoproteção. Agora, essa consciência incompleta é o que chamamos de ego, o “eu”. Como expliquei no início da minha breve palestra introdutória, a individualidade é a acumulação dos resultados de várias ações que foram impedidas, dificultadas por certas limitações, valores herdados e adquiridos. Espero não estar tornando isso muito complicado e filosófico, tentarei simplificar.
Quando você fala do “eu”, você quer dizer um nome, uma forma, certas ideias, preconceitos, certas distinções de classe, qualidades, preconceitos religiosos e assim por diante, tudo isso que se desenvolveu através do desejo de autoproteção, segurança, conforto. Portanto, para mim, o “eu”, baseado em uma ilusão, não tem realidade. Portanto, a questão não é se existe reencarnação, se existe possibilidade de desenvolvimento futuro, mas se a mente e o coração podem se libertar desta limitação do “eu”, do “meu”.
Você me pergunta se acredito ou não na reencarnação porque você espera que através da minha afirmação você possa adiar a compreensão, a ação no presente e que eventualmente você chegará a realizar o êxtase da vida ou da imortalidade. Você quer saber se, sendo forçado a viver em um ambiente condicionado com oportunidades limitadas, você conseguirá, através dessa miséria e conflito, perceber esse êxtase da vida, a imortalidade. Como está ficando tarde, devo ser breve, e espero que vocês reflitam sobre isso.
Agora, eu digo que existe a imortalidade, para mim é uma experiência pessoal; mas só pode ser realizada quando a mente não está olhando para um futuro em que viverá de forma mais perfeita, mais completa, mais rica. A imortalidade é o presente infinito. Para compreender o presente com o seu significado pleno e rico, a mente deve se libertar do hábito da aquisição autoprotetora. Somente quando ela está completamente nua existe imortalidade.
Pergunta: Para que possamos compreender a verdade devemos trabalhar sozinhos ou coletivamente?
Krishnamurti: Se me permite sugerir, deixe de lado a questão da verdade; em vez disso, vamos considerar se é inteligente trabalhar para o ganho individual, para o coletivo. Durante séculos, cada um procurou sua própria segurança e, portanto, foi implacável, agressivo, explorador, criando assim confusão e caos. Considerando tudo isso, você, o indivíduo, começará a trabalhar voluntariamente pelo bem-estar do todo. Nesse ato voluntário, o indivíduo nunca se tornará mecânico, automático, mero instrumento nas mãos do grupo e, portanto, nunca haverá conflito entre o grupo e ele mesmo. A questão da expressão criativa individual em oposição e em conflito com o grupo só desaparecerá quando cada um agir integralmente na plenitude da compreensão. Isso por si só trará uma cooperação inteligente, na qual a compulsão, seja através do medo ou da ganância, não tem lugar. Não esperem ser levados a agir coletivamente, mas comecem a despertar a inteligência, despojando-se de todas as estupidezes aquisitivas e, portanto, haverá a alegria do trabalho coletivo.
17 de abril de 1935.