https://jkrishnamurti.org/content/ojai-10th-public-talk-29th-june-1934
Décima palestra em Oak Grove, Ojai, Califórnia
Pelas questões que me foram colocadas, parece que as minhas palestras criaram certa confusão. Penso que é porque estamos presos nas próprias palavras, não nos aprofundamos no seu significado nem as usamos como meio de compreensão.
Para mim, existe uma realidade, uma imensa Verdade viva. E para compreendê-la, deve haver total simplicidade de pensamento. O que é simples é infinitamente sutil, o que é simples é enormemente delicado. Existe uma grande sutileza, uma infinita sutileza e delicadeza. E se vocês usarem as palavras apenas como um meio de chegar a essa delicadeza, a essa simplicidade de pensamento, então receio que vocês não compreenderão o que quero transmitir. Mas se vocês usarem o significado das palavras como uma ponte para atravessar, então as palavras não se tornarão uma ilusão na qual a mente se perde.
Eu digo que existe uma realidade viva, chamem-na de Deus, Verdade ou como quiserem. E ela não pode ser encontrada ou realizada através da busca. Onde existe a implicação da busca há contraste e dualidade. Sempre que a mente busca, isso inevitavelmente implica uma divisão, uma distinção, um contraste; o que não significa que a mente tem que estar satisfeita, que a mente tem que estar estagnada. Existe aquele equilíbrio delicado, que não é nem contentamento, nem este esforço incessante nascido da busca, deste desejo de alcançar, de conquistar. E nessa delicadeza de equilíbrio reside a simplicidade, não a simplicidade de ter poucas roupas ou poucas posses. Não estou falando dessa simplicidade, que é apenas uma forma grosseira, mas da simplicidade nascida da delicadeza de pensamento, na qual não há busca nem contentamento.
Como eu disse, busca implica dualidade, contraste. Agora, onde há contraste, dualidade há identificação com um dos opostos e, portanto, surge a compulsão. Quando dizemos que buscamos, nossa mente está rejeitando algo e procurando um substituto que a satisfaça e, portanto, ela cria a dualidade. E a partir disso surge a compulsão. Ou seja, a escolha de um é a superação do outro, não é?
Quando dizemos que buscamos ou cultivamos um novo valor, isso trata-se apenas da superação daquilo em que a mente está presa, que é o valor oposto do valor que buscamos. Essa escolha é baseada na atração por um ou no medo do outro. E esse agarramento por meio da atração ou a rejeição por meio do medo cria influência na mente. A Influência é a negação da compreensão e só pode existir onde há divisão, a divisão psicológica, da qual surgem distinções como classe, nacionalidade, religião, gênero. Isto é, quando a mente está tentando superar, ela cria a dualidade. E essa mesma dualidade nega a compreensão e cria as distinções que chamamos de classe, religião, gênero. Essa dualidade influencia a mente e, portanto, ela não pode compreender o significado do ambiente ou o significado da causa do conflito. Essas influências psicológicas são meramente reações ao ambiente provenientes do “eu”, de gostos e desgostos, de antíteses. E, naturalmente, onde há antíteses, opostos não pode haver compreensão. Dessa distinção surge a classificação das influências como benéficas e más. Assim, enquanto a mente for influenciada – e a influência nasce da atração, dos opostos, das antíteses – haverá dominação ou compulsão do amor, do intelecto, da sociedade. E essa influência será um obstáculo àquela compreensão, que é a beleza, a Verdade e o próprio amor.
Agora, se vocês puderem se tornar conscientes dessa influência, então poderão discernir sua causa. A maioria das pessoas parece estar consciente superficialmente, não de forma profunda. É somente quando há percepção na maior profundidade da consciência, percepção de pensamento e emoção, é que vocês podem discernir a divisão que é criada através da influência, que nega a compreensão.
Pergunta: Após ouvir sua palestra sobre memória, eu perdi completamente a minha e descobri que não consigo me lembrar das minhas enormes dívidas. Eu me sinto feliz. Isso é liberação?
Krishnamurti: Pergunte à pessoa a quem você deve o dinheiro. Receio que haja alguma confusão em relação ao que venho tentando dizer sobre memória. Se vocês dependem da memória como um guia para a conduta, como um meio de atividade na vida, então a memória impedirá sua ação, sua conduta, porque a ação ou conduta será meramente o resultado do cálculo e, portanto, ela não tem espontaneidade, riqueza, completude. Isso não significa que você deva esquecer suas dívidas. Você não pode esquecer o passado. Você não pode apagá-lo da sua mente. Isso é uma impossibilidade. Subconscientemente ele existirá, mas se essa memória subconsciente e adormecida estiver influenciando você inconscientemente, estiver moldando sua ação, sua conduta, toda a sua visão da vida, então essa influência sempre criará mais limitações, impondo mais fardos ao funcionamento da inteligência.
Por exemplo, eu recentemente vim da Índia; estive na Austrália e na Nova Zelândia onde conheci várias pessoas, tive muitas ideias e vi muitas paisagens. Eu não consigo esquecer isso, embora essa memória possa enfraquecer. Mas a reação ao passado pode impedir a minha plena compreensão no presente, pode impedir o funcionamento inteligente da minha mente. Isto é, se as minhas experiências e lembranças do passado estão se tornando obstáculos no presente através de suas reações, então eu não posso compreender ou viver de forma plena e intensa no presente.
Você reage ao passado porque o presente perdeu seu significado ou porque deseja evitá-lo; então você volta ao passado e vive naquele prazer emocional, naquela reação de memória que surge, porque o presente tem pouco valor. Então, quando você diz: “Perdi completamente a memória”, temo que você esteja apto para apenas uma forma. Você não pode apagar a memória, mas ao viver completamente no presente, na plenitude do momento, você se torna consciente de todos os emaranhados subconscientes da memória, das esperanças e anseios adormecidos que surgem e o impedem de funcionar inteligentemente no presente. Se vocês estiverem conscientes disso, desse obstáculo, se vocês estiverem conscientes dele em toda a sua profundidade, não superficialmente, então a memória subconsciente adormecida, que nada mais é do que a falta de compreensão e a incompletude da vida, desaparece e, portanto, vocês encontram cada movimento do ambiente, cada rapidez de pensamento de forma nova.
Pergunta: O senhor diz que a compreensão completa do ambiente externo e interno do indivíduo o liberta da escravidão e do sofrimento. Agora, mesmo nesse estado, como alguém pode se libertar do sofrimento indescritível que, na natureza das coisas, é causado pela morte de alguém que ele realmente ama?
Krishnamurti: Qual é a causa do sofrimento nesse caso? E o que é isso que chamamos de sofrimento? O sofrimento não é apenas um choque para a mente, a fim de despertá-la para sua própria insuficiência? O reconhecimento dessa insuficiência cria o que chamamos de sofrimento. Suponhamos que você dependa do seu filho, do seu marido ou da sua esposa para satisfazer essa insuficiência, essa incompletude; através da perda dessa pessoa que você ama é criada a plena consciência desse vazio, desse vácuo, e a partir dessa consciência vem o sofrimento, e então você diz: “Perdi alguém”.
Assim, através da perda há, antes de tudo, a plena consciência do vazio, da qual você tem evitado cuidadosamente. Portanto, onde há dependência há vazio, superficialidade, insuficiência e, portanto, sofrimento e dor. Nós não queremos reconhecer isso, não vemos que essa é a causa fundamental. Então começamos a dizer: “Sinto falta do meu amigo, do meu marido, da minha esposa, do meu filho”. Como vou superar essa perda? Como vou superar esse sofrimento?”
Agora, toda superação é apenas substituição. Nela não há compreensão e, portanto, só pode haver mais sofrimento, embora momentaneamente vocês possam encontrar uma substituição que irá colocar a mente para dormir completamente. Se vocês não buscam a superação, então vocês recorrem às sessões espíritas, aos médiuns ou se refugiam na comprovação científica de que a vida continua após a morte. Assim, vocês começam a descobrir vários meios de fuga e de substituição, que os aliviam momentaneamente do sofrimento. Considerando que se houvesse a cessação desse desejo de superar e se houvesse realmente o desejo de compreender, de descobrir, o que causa dor e sofrimento fundamentalmente, então vocês descobririam que enquanto houver solidão, superficialidade, vazio, insuficiência, que em sua expressão externa é dependência, haverá dor. E vocês não podem preencher essa insuficiência superando obstáculos, fazendo substituições, fugindo ou acumulando, o que é apenas a astúcia da mente perdida na busca pelo ganho.
O sofrimento é apenas aquela clareza intensa e elevada de pensamento e emoção que força vocês a reconhecerem as coisas como elas são. Mas isso não significa aceitação, resignação. Quando vocês veem as coisas como elas são no espelho da Verdade, que é a inteligência, então há uma alegria, um êxtase. Nisso não há dualidade, sentimento de perda, divisão. Eu lhes asseguro que isso não é teórico. Se vocês considerarem o que estou dizendo agora, junto com minha resposta à primeira pergunta sobre memória, vocês verão como a memória cria uma dependência cada vez maior, o contínuo olhar emocional para um evento do passado para obter uma reação a partir dele, o que impede a completa expressão da inteligência no presente.
Pergunta: Que sugestão ou conselho você poderia dar a alguém que está impedido por um forte desejo sexual?
Krishnamurti: Afinal, onde não há expressão criativa da vida, nós damos importância excessiva ao sexo, que se torna um grande problema. Portanto, a questão não é que conselho ou sugestão eu poderia dar, ou como alguém pode superar a paixão, o desejo sexual, mas sim como libertar essa vida criativa, não apenas abordar uma parte dela, que é o sexo; isto é, como compreender a totalidade, a completude da vida.
Agora, através da educação moderna, através das circunstâncias e do ambiente, vocês são levados a fazer algo que odeiam. Vocês sentem repulsa, mas são forçados a fazerem aquilo por falta de equipamento adequado, por falta de treinamento adequado. Em seus trabalhos vocês estão sendo impedidos pelas circunstâncias, pelas condições de se expressarem de forma fundamental e criativa e, portanto, deve haver uma saída; e essa saída se torna o problema sexual, da bebida ou algum problema idiota e fútil. Todas essas saídas se tornam problemas.
Ou vocês têm inclinação artística. Existem muito poucos artistas, mas vocês podem estar inclinados. E essa inclinação está sendo continuamente corrompida, distorcida, impedida, de modo que vocês não têm meios de autoexpressão real e, portanto, uma importância excessiva passa a ser dada ao sexo ou a algum costume religioso. Ou suas ambições são impedidas, restringidas, dificultadas e, portanto, é dada uma importância excessiva àquelas coisas que deveriam ser normais novamente. Assim, até que vocês compreendam completamente os seus desejos religiosos, políticos, econômicos, sociais e os seus obstáculos, as funções naturais da vida terão uma imensa importância e o primeiro lugar nas suas vidas. Daí todos os inúmeros problemas da ganância, da possessividade, do sexo, das distinções sociais e étnicas terão sua falsa medida e o seu falso valor. Mas se vocês lidassem com a vida não em partes, mas como um todo, de forma abrangente, criativa, com inteligência, então vocês veriam que esses problemas, que estão deteriorando a mente e destruindo a vida criativa, desapareceriam e, portanto, a inteligência funcionaria normalmente; e nisso há um êxtase.
Pergunta: Tenho a impressão de que tenho colocado suas ideias em prática, mas não tenho alegria na vida, nem entusiasmo por qualquer atividade. Minhas tentativas de conscientização não esclareceram minha confusão, nem trouxeram alguma mudança ou vitalidade à minha vida. Minha vida não tem mais significado para mim agora do que tinha quando comecei a ouvi-lo, há sete anos. O que há de errado comigo?
Krishnamurti: Eu me pergunto se o questionador entendeu, em primeiro lugar, o que eu estava dizendo antes de tentar colocar minhas ideias em ação. E por que ele deveria colocar minhas ideias em ação? E quais são minhas ideias? E por que são minhas ideias? Eu não estou lhe dando um molde ou um código pelo qual você possa viver ou um sistema que possa seguir. Tudo o que estou dizendo é que para viver de forma vital, criativa, inteligente e com entusiasmo, a inteligência deve funcionar. Essa inteligência é corrompida, impedida pelo que chamamos de memória. E já expliquei o que quero dizer por memória, então não vou entrar no assunto novamente. Enquanto houver esta batalha constante para conquistar, enquanto a mente for influenciada haverá dualidade e, portanto, dor e luta. E a nossa busca pela Verdade, ou pela realidade, é apenas uma fuga dessa dor.
E então eu digo: tomem consciência de que seus esforços, suas lutas, suas memórias que interferem estão destruindo sua inteligência. Tornarem-se conscientes não é serem superficialmente conscientes, mas penetrar em toda a profundidade da consciência para não deixar por descobrir uma reação inconsciente. Tudo isso exige pensamento. Tudo isso exige um estado de alerta da mente e do coração, não uma mente desordenada com crenças, credos e ideais. A maioria das mentes está sobrecarregado com isso e com o desejo de seguir alguém. À medida que vocês se tornam conscientes de suas responsabilidades, não digam que vocês não devem ter ideais, credos e não repitam todo o resto do jargão. O próprio ”devo” cria outra doutrina, outro credo. Apenas tornem-se conscientes. E na intensidade dessa consciência, na intensidade da percepção, nessa chama você criará tal crise, tal conflito que esse próprio conflito dissolverá o obstáculo.
Sei que algumas pessoas vêm aqui ano após ano e tento explicar as ideias de maneira diferente a cada ano, mas temo que haja muito pouca reflexão entre as pessoas que dizem: “Estamos ouvindo você há sete anos”. Quero dizer com pensamento não o mero raciocínio intelectual, que nada mais é do que cinzas, mas aquele equilíbrio entre emoção e razão, entre afeição e pensamento. E esse equilíbrio não é influenciado, não é afetado pelo conflito dos opostos. Mas se não há a capacidade de pensar com clareza, nem a intensidade do sentimento, como poderemos despertar, como pode haver equilíbrio, como pode haver esse estado de alerta, consciência? Assim, a vida se torna fútil, superficial, sem valor.
Portanto, a primeira coisa a fazer, se assim posso sugerir, é descobrir por que vocês estão pensando e sentindo de determinada maneira. Não tentem alterá-los, não tentem analisar seus pensamento e emoções, mas tornem-se conscientes porque vocês estão pensando de certa maneira e por qual motivo vocês agem. Embora vocês possam descobrir o motivo através da análise, embora vocês possam descobrir algo através da análise, isso não será real; será real somente quando vocês estiverem intensamente despertos no momento do funcionamento do seu pensamento e da sua emoção, então vocês verão sua extraordinária sutileza, sua fina delicadeza. Enquanto vocês tiverem um “devo” e um “não devo”, vocês nunca descobrirão, nessa compulsão, aquele movimento rápido do pensamento e da emoção. E tenho certeza de que vocês foram criados na escola do “devo” e do “não devo” e, portanto, destruíram o pensamento e o sentimento. Vocês foram limitados e paralisados pelos sistemas, métodos, por seus professores. Portanto, deixem todos aqueles “devo” e ”não devo”. Isso não significa que haverá licenciosidade, mas que vocês vão se tornar conscientes de uma mente que está sempre dizendo: “devo” e “não devo”. Assim, como uma flor desabrocha pela manhã, a inteligência acontece, está ali, funcionando, criando compreensão.
Pergunta: O artista às vezes é mencionado como alguém que essa compreensão de que você fala, pelo menos enquanto trabalha criativamente. Mas se alguém o perturba ou o contraria, ele pode reagir violentamente, dando a desculpa de que sua reação é uma manifestação de temperamento. Obviamente, ele não está vivendo completamente no momento. Será que ele realmente compreende se ele se volta tão facilmente para a autoconsciência?
Krishnamurti: Quem é a pessoa que você chama de artista? Um homem que é momentaneamente criativo? Para mim, um homem assim não é um artista. O homem que apenas em raros momentos tem esse impulso criativo e expressa essa criatividade através da perfeição da técnica, certamente você não o chamaria de artista. Para mim, o verdadeiro artista é aquele que vive completamente, harmoniosamente, que não separa sua arte da vida, cuja própria vida é essa expressão, seja ela um quadro, uma música ou o seu comportamento; aquele que não separou sua expressão em uma tela, em uma música ou pedra de sua conduta diária, de sua vida diária. Isso exige a mais elevada inteligência, a maior harmonia. Para mim, o verdadeiro artista é o homem que tem essa harmonia. Ele pode expressá-la em telas, pode falar ou pintar. Ou ele não pode expressá-la, pode apenas senti-la. Mas tudo isso exige esse extraordinário equilíbrio, essa intensidade de consciência e, portanto, sua expressão não está divorciada da continuidade diária da vida.
29/06/1934.