https://jkrishnamurti.org/content/ojai-4th-public-talk-19th-june-1934

                                                                                                                       4ª palestra em Oak Grove,Ojai, Califórnia

Primeiro responderei a algumas das perguntas que me foram feitas e depois farei uma breve palestra.

Pergunta: A intuição inclui experiências passadas e algo mais ou apenas experiências passadas?

Krishnamurti: Para mim, intuição é inteligência. E inteligência não é experiência passada, ela é a compreensão da experiência passada. Vou falar sobre toda esta ideia de experiência passada, memória, inteligência e mente; mas devo responder agora a esse ponto específico, se a intuição nasce do passado.

Para mim, o passado é um fardo, o passado sendo falhas na compreensão. E se vocês realmente basearem sua ação no passado, na chamada intuição, vocês vão se perder. Considerando que, se há ação espontânea no presente sempre em movimento, nessa ação há inteligência. E essa inteligência é intuição. A inteligência não deve ser separada da intuição. A maioria das pessoas gosta de separar a intuição da inteligência, porque a intuição lhes dá uma certa segurança e esperança. Muitas pessoas dizem que agem “por intuição”, ou seja, elas agem sem razão, sem profundidade de pensamento. Muitas pessoas aceitam uma teoria, uma ideia porque dizem que sua “intuição” lhes diz que ela é verdade. Não há razão por trás disso, elas simplesmente aceitam porque essa teoria ou ideia lhes dá alguma solução, algum conforto. Não é a razão que está funcionando realmente, mas apenas suas próprias esperanças, seus próprios desejos que estão dirigindo suas mentes. Considerando que a inteligência é separada do ambiente e, portanto, há razão, pensamento por trás dela.

Pergunta: Como posso agir livremente e sem autorepressão quando sei que minha ação vai magoar aqueles que amo? Nesse caso, qual é o indício da ação correta?

Krishnamurti: Acho que respondi essa pergunta outro dia, mas provavelmente o interrogante não estava aqui, então vou respondê-la de novo. O indício da ação correta está em sua espontaneidade, mas agir espontaneamente é ser muito inteligente. A maioria das pessoas tem apenas reações que são corrompidas, distorcidas e reprimidas por causa da falta de inteligência. Onde a inteligência está funcionando, existe ação espontânea.

Agora, o interrogante quer saber como ele pode agir livremente e sem autorepressão quando sabe que sua ação vai magoar aqueles que ama. Sabem, amar é ser livre – ambas as partes são livres. Onde existe a possibilidade de dor, onde existe a possibilidade de sofrimento no amor, isso não é amor, é apenas uma forma sutil de possessividade, de aquisição. Se vocês amam, realmente amam alguém, não há possibilidade de sentirem dor quando vocês fazem algo que consideram certo. É apenas quando você quer que aquela pessoa faça o que você deseja ou quando ela quer que você faça o que ela deseja que há dor. Ou seja, vocês gostam de ser possuídos, vocês se sentem seguros, protegidos, confortáveis; embora vocês saibam que esse conforto é transitório, vocês se abrigam nesse conforto, nessa transitoriedade. Então, toda luta por conforto, por encorajamento, realmente revela a falta de riqueza interior; e, portanto, uma ação separada, apartada do outro indivíduo cria perturbação, dor e sofrimento naturalmente. E um indivíduo tem que suprimir o que realmente sente para se ajustar ao outro. Em outras palavras, esta constante repressão, provocada pelo chamado amor, destrói os dois indivíduos. Nesse amor não existe liberdade; isso é apenas uma escravidão sutil. Quando vocês sentem muito ardentemente que devem fazer algo, vocês o fazem, às vezes de forma hábil e sutil, mas vocês o fazem. Existe sempre essa vontade de fazer, de agir de forma independente.

Pergunta: Estou certo em acreditar que todas as condições e ambientes se tornam adequados para uma mente realmente inteligente? Não é uma questão de ver a arte no padrão?

Krishnamurti: Para uma mente inteligente, o ambiente confere seu significado. Portanto, essa mente inteligente compreendeu o ambiente, ela está livre do ambiente, não é condicionada pelo ambiente. O que condiciona a mente? A falta de compreensão, não é? Não o ambiente, o ambiente não limita a mente; o que limita a mente é a falta de compreensão de uma condição particular.

Se a mente é inteligente, ela não é condicionada por nenhum ambiente, porque ela está o tempo todo consciente, atenta, funcionando e, portanto, discernindo, percebendo o valor total do ambiente. A mente só pode ser condicionada pelo ambiente quando está letárgica e preguiçosa, tentando escapar da própria condição. Embora a mente possa pensar dentro dessa condição, ela não está funcionando verdadeiramente, ela está apenas pensando dentro desse círculo limitado, o que para mim não é pensamento absolutamente.

Portanto, o que cria inteligência, o que desperta inteligência é a percepção de valores verdadeiros. E como a mente está deteriorada pelos muitos valores impostos pela tradição, a pessoa tem que se livrar dessas experiências passadas, dessas cargas passadas para compreender o ambiente presente. Portanto, a batalha é entre o passado e o presente. A luta é entre o condicionamento que cultivamos ao longo dos séculos e as circunstâncias presentes em constante mudança. Agora, uma mente obscurecida pelo passado não pode compreender estas rápidas mudanças do ambiente. Em outras palavras, para compreender o presente, a mente deve estar supremamente livre do passado; ou seja, ela deve ter uma apreciação espontânea dos verdadeiros valores no presente. Falarei sobre isso mais tarde.

“Não é uma questão de ver a arte no padrão?” Certamente. Ou seja, a mente deve ver os valores tão sutis, tão encobertos, delicados no padrão das circunstâncias, no padrão do ambiente. E para perceber essa sutileza, essa delicadeza, a mente deve estar viva, flexível, aguçada, não sobrecarregada pelos valores de ontem.

Pergunta: Parece haver a ideia de que a liberação é uma meta, um ápice. Nesse caso, qual é a diferença entre lutar pela liberação e lutar por qualquer outra culminação? Certamente, a ideia de um fim, uma meta, uma culminação está errada. Então, se não devemos considerar a liberação dessa forma, como considerá-la?

Krishnamurti: Receio que o interrogante não tenha ouvido o que estou falando. Provavelmente, ele leu alguns livros meus antigos e fez a pergunta.

Agora, a mente busca uma culminação, uma meta, um fim, porque ela quer estar certa, segura. Tire todas as seguranças e certezas da mente, que são formas sutis de autoglorificação ou de desejo de própria continuidade. Tire tudo isso da mente, deixe-a despida, então vocês verão que a mente estará lutando novamente por segurança, por abrigo, porque, a partir dessa segurança, ela pode julgar, pode funcionar, ela pode agir de forma segura como um animal amarrado em um poste.

Como eu disse, a liberação não é um fim, não é uma meta; ela é a compreensão dos valores corretos, dos valores eternos. A inteligência é sempre nova, ela não tem uma meta, uma finalidade. No desejo de atingir há um anseio sutil por autocontinuidade, autocontinuidade glorificada. E toda luta, todo esforço para atingir a liberação indica uma fuga do presente. Esta inteligência total, que é liberação, não se compreende através do esforço. Afinal, vocês se esforçam quando querem, quando desejam adquirir algo. Mas a liberação não é para ser adquirida, a verdade não é para ser adquirida. Portanto, onde há um desejo por liberação, por uma culminação, por uma conquista, há um esforço para sustentar, preservar, perpetuar essa consciência que chamamos de “eu”. A própria essência desse “eu” é um esforço para chegar a um ponto culminante, porque ele vive em uma série de movimentos de memórias, movendo-se em direção a um fim.

Mas então, se não devemos considerar a liberação dessa forma, como considerá-la? Por que considerá-la? Por que vocês querem a liberação? É porque eu tenho falado sobre isso nos últimos dez anos? Ou é porque vocês querem escapar das condições? Ou porque isso lhes dará maior entusiasmo, maior estímulo, maior domínio intelectual? Por que vocês querem a liberação? Vocês dizem: “Não estou feliz e, se eu conseguir encontrar a liberação, haverá felicidade. Porque estou na miséria e, se eu encontrar isto, então a miséria desaparecerá.” Se vocês dizem isso, então vocês estão apenas buscando substituição.  

A liberação não deve ser “considerada” de forma alguma. Ela nasce. Ela surge apenas quando a mente não está tentando escapar da condição em que está presa, mas compreende o significado dessa condição que cria o conflito. Vejam, como vocês não compreendem a condição, o ambiente que cria o conflito, então vocês buscam uma ideia, uma culminação, um fim, uma meta, dizendo para si mesmos: “Se eu compreender aquilo, isso vai desaparecer”. Ou: “Se eu tiver isso, posso colocá-lo sobre esta condição”. Portanto, isso é apenas uma forma sutil de fuga contínua do presente. Todos os ideais, crenças, metas e culminações são apenas formas de fugir do presente. Considerando que, se vocês realmente pensarem nisso, quanto mais vocês perseguem um fim, uma meta, um objetivo, uma crença, um ideal, mais vocês estão sobrecarregando o futuro, porque vocês estão fugindo do presente e, portanto, criando cada vez mais limitação, conflito, sofrimento.

Pergunta: Algumas pessoas dizem que sua ideia é que devemos nos libertar agora, enquanto temos a oportunidade, e que podemos nos tornar Mestres mais tarde, em alguma outra ocasião. Mas se vamos nos tornar Mestres de fato, por que não é bom para nós começarmos a trilhar esse caminho agora?

Krishnamurti: Existe a oportunidade agora para vocês se libertarem? O que vocês querem dizer com “oportunidade”? Como vocês se libertariam agora? Através de algum processo milagroso? E depois se tornariam Mestres? Senhores, o que é um Mestre e o que é liberação? O que é Maestria? Certamente, se não existe liberação não pode haver Maestria? Se a liberação não é inteligência total no presente, então essa inteligência não será adquirida em algum futuro distante. Então vocês querem a liberação agora e a maestria depois? Eu me pergunto por que vocês querem a liberação agora. Receio que a liberação não tenha significado quando vocês a querem. E esta ideia de se tornar um Mestre – o interrogante deve pensar que a vida é como passar em um exame, se tornar alguma coisa – receio que este se tornar um Mestre, querer se libertar não tenha significado. Vocês não veem, quando vocês realmente não querem se tornar nada, mas viverem completamente em um dia, na riqueza de um único dia, então vocês saberão o que é Maestria ou liberação. Este querer cria continuamente um futuro no qual vocês nunca se realizaram e, portanto, vocês vivem incompletamente no presente.

Nos últimos três dias estive falando sobre mente e inteligência. Agora, para mim, não existe divisão entre mente e inteligência. A mente despida de todas as suas memórias e obstáculos, funcionando espontaneamente, plenamente, estando consciente, cria compreensão. E isso é inteligência, é êxtase. Isso para mim é imortalidade, atemporalidade. Inteligência é atemporalidade, ela é a própria mente. Essa inteligência é o real, é a mente em si, ela não é separada da mente. Essa inteligência é êxtase, está sempre nova, sempre em movimento.

Agora, a memória é apenas o impedimento para a inteligência. A memória é independente da inteligência. A memória é a perpetuação da consciência do “eu” que é o resultado do ambiente, daquele ambiente cujo significado completo a mente não viu. Portanto, a memória embota, impede a inteligência sempre nova, a inteligência que está sempre em movimento, atemporal. A mente é inteligência, mas a memória se impôs à mente. Isto é, a memória, sendo a consciência do “eu”, identifica-se com a mente. E a consciência do “eu” surge como se dividisse a inteligência, a mente. Ela divide, embota, impede, corrompe a mente. Assim, a memória, identificando-se com a mente, tenta se tornar a inteligência, o que para mim é errado – se posso usar a palavra “errado” aqui – porque a mente em si é inteligência. E é a memória que corrompe a mente e, portanto, obscurece a inteligência. E, portanto, a mente parece sempre buscar essa inteligência atemporal, que é a própria mente.

Então, o que é memória? A memória não é incidente, experiência, medo, esperança, desejo, crença, ideia, preconceito e tradição, ação, fato, com suas reações sutis e complexas? No momento em que há esperança, desejo, medo, preconceito, temperamento, isso condiciona a mente. E esse condicionamento cria memória, que obscurece a clareza da mente que é inteligência. Essa memória rola no tempo, coagulando-se e endurecendo-se na autoconsciência do “eu”. Quando vocês falam sobre o “eu” é isso. Ele é a cristalização, o endurecimento da memória de suas reações, das reações de experiência, incidentes, crenças, ideais. E depois de se tornar uma massa solidificada, essa memória se identifica e se confunde com a mente. Se vocês pensarem nisso, vocês verão. A autoconsciência ou aquela consciência particular, o “eu”, nada mais é do que o feixe da memória, e o tempo nada mais é do que o campo no qual ele pode funcionar e jogar. Portanto, essa massa endurecida de reações não pode ser resolvida, ela não pode ser resolvida voltando no tempo por meio da análise, da análise do passado, porque esse próprio olhar para trás, essa análise do passado é um dos truques da própria memória. Sabem, ter um prazer doentio em reafirmar e recondicionar o passado no presente é a atividade constante, o trabalho da memória, não é? Por favor, isso não é esperteza, não é um conceito filosófico. Apenas pensem nisso por um minuto e vocês verão que isso é verdade. Existe essa massa de reações nascidas da condição, do ambiente, com seus preconceitos, vários desejos e tudo isso, portanto existe aquilo que vocês chamam de “eu”.

Então nasce essa ideia de que vocês devem dissolver o “eu” por causa do que venho dizendo. Ou vocês mesmos sentem a estupidez disso, então começam a se desemaranhar; a própria memória começa a se desemaranhar voltando ao passado, que é o processo de autoanálise. E se vocês realmente pensarem nisso, verão que própria memória está tendo um prazer doentio em recondicionar o passado no presente. Da mesma forma, o futuro da memória é um endurecimento maior através de mais desejos, mais acúmulo de experiências e reações. Em outras palavras, o tempo é memória ou autoconsciência. Vocês não podem dissolver a autoconsciência voltando ao passado. O passado é apenas a acumulação de memória. E mergulhar no passado não dissolverá essa consciência no presente, nem ir para o futuro, que é apenas mais acúmulo, mais desejo, mais reação e endurecimento, que chamamos de crenças, ideais, esperanças – o futuro que ainda está envolvido no tempo. Enquanto continuar este processo de memória como passado e futuro, a inteligência nunca poderá atuar completamente ou plenamente no presente.

A intuição, como comumente entendida, é baseada no passado, no acúmulo passado de memória, no acúmulo de experiências passadas. E é apenas um aviso para agir com cuidado, ou livremente, no presente. Como eu disse, essa atemporalidade não é um conceito filosófico para mim, ela é uma realidade. E vocês verão que ela é uma realidade se experimentarem o que estou dizendo. Ou seja, vocês verão que ela é uma realidade se suas mentes não estiverem obstruídas pela acumulação passada que vocês chamam de memória, que funciona e direciona vocês no presente, impedindo-os de serem totalmente inteligentes e, portanto, de viverem completamente no presente.  

Portanto, liberação ou verdade ou Deus é a libertação da mente, que é em si inteligência, do fardo da memória. Eu lhes expliquei o que quero dizer com memória, não a memória de fatos ou falsidades, mas o fardo colocado na mente pela autoconsciência que é memória. E essa memória é a reação ao ambiente que não foi compreendido. A imortalidade não é a perpetuação da consciência do “eu”, que é apenas o resultado de um ambiente falso, mas imortalidade é a liberdade, a liberação da mente do fardo da memória.

19 de junho de 1934.