Mantenha vivo o descontentamento

O descontentamento não é essencial em nossa vida, para qualquer questão, qualquer investigação, para examinar, descobrir o que é real, o que é Verdade, o que é essencial na vida? Eu posso ter esta chama de descontentamento na escola; e então arranjo um bom emprego e esse descontentamento desaparece. Eu fico satisfeito, me esforço para manter minha família, tenho que ganhar o sustento e, assim, meu descontentamento é acalmado, destruído, e me torno uma entidade medíocre satisfeita com as coisas da vida, não mais descontente. Mas a chama tem que ser mantida do início até o fim, de modo que haja verdadeira investigação, verdadeiro exame do problema do que é descontentamento. Porque a mente busca muito facilmente uma droga para contentá-la com virtudes, com qualidades, ideias, ações, ela estabelece uma rotina e fica presa aí. Estamos bem familiarizados com isso, mas nosso problema não é como acalmar o descontentamento, mas como mantê-lo ardente, vivo, vital. Todos os nossos livros religiosos, todos os nossos gurus, todos os sistemas políticos pacificam a mente, aquietam a mente, influenciam a mente a se apaziguar, deixar de lado o descontentamento e chafurdar em alguma forma de contentamento. Não é essencial estar descontente a fim de descobrir o que é verdadeiro?

O Livro da Vida


Um contentamento que não é da mente

O descontentamento não é essencial, não para ser sufocado, mas para ser encorajado, investigado, sondado, de modo que com a compreensão do que é chegue o contentamento? Esse contentamento não é o contentamento produzido por um sistema de pensamento; mas é aquele contentamento que surge com a compreensão do que é. Esse contentamento não é produto da mente – a mente que está perturbada, agitada, incompleta, quando busca paz, quando procura um caminho distante do que é. E assim a mente, através de justificação, comparação, julgamento, tenta alterar o que é, e espera chegar a um estado em que não estará perturbada, quando estará em paz, quando houver quietude. E quando a mente está perturbada por condições sociais, por pobreza, fome, degradação, pela apavorante miséria, vendo tudo isso, ela quer alterar isto; fica enredada no modo de alterar, no sistema para alterar. Mas se a mente for capaz de olhar o que é sem comparação, sem julgamento, sem o desejo de alterar para outra coisa, então você verá que surge um tipo de contentamento que não é da mente.
O contentamento que é produto da mente é uma fuga. É estéril. Está morto. Mas existe contentamento que não é da mente, que surge quando existe compreensão do que é, em que há uma profunda revolução que afeta a sociedade e a relação individual.

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O descontentamento não tem resposta

Com o que estamos descontentes? Certamente com o que é. O que é pode ser a ordem social, o que é pode ser a relação, o que é pode ser o que somos, a coisa que somos essencialmente – ou seja, o feio, os pensamentos dispersivos, as ambições, as frustrações, os inumeráveis medos; é isso que somos. Afastando-nos disso, pensamos que encontraremos uma resposta para nosso descontentamento. Assim estamos sempre procurando um modo, um meio para mudar o que é – é com isso que nossa mente está interessada. Se estou descontente e se quero encontrar um modo, um meio para o contentamento, minha mente fica ocupada com o meio, a forma e a prática de um modo de chegar ao contentamento. Então não estou mais interessado com o descontentamento, com as brasas, a chama que está queimando, que chamamos de descontentamento. Nós não descobrimos o que há por trás desse descontentamento. Só estamos interessados em nos afastar dessa chama, dessa ansiedade abrasadora.
Isto é imensamente difícil porque nossa mente nunca está satisfeita, nunca está contente com o exame do que é. Ela sempre quer transformar o que é em outra coisa, que é o processo de condenação, justificação ou comparação. Se você observar sua própria mente verá que quando ela fica face a face com o que é, então ela condena, compara com “o que deveria ser”, ou justifica e assim por diante, e empurra o que é, deixando de lado a coisa que causa a perturbação, a ansiedade, a dor.

O Livro da Vida

Antes de tudo, para descobrirmos qualquer coisa, deve haver grande descontentamento, grande questionamento, infelicidade; e muito poucas pessoas no mundo, quando estão descontentes, desejam acentuar essa insatisfação, desejam passar por isso para descobrir. Elas geralmente querem o oposto. Se elas estão descontentes, querem felicidade; considerando que, para mim – se posso ser pessoal – eu não queria o oposto, queria descobrir. E assim, gradualmente, através de vários questionamentos e atritos contínuos, eu vim a realizar o que se pode chamar de verdade ou Deus. Espero ter respondido.

Auckland, Conversa com homens de negócios – 06 de abril de 1934