https://jkrishnamurti.org/content/auckland-new-zealand-2nd-talk-town-hall-1st-april-1934
Segunda palestra no Town Hall
Auckland, Nova Zelândia
Amigos, provavelmente, a maioria de vocês veio aqui porque está buscando algo. Pelo menos a maioria de vocês está aqui porque espera encontrar algo participando desta reunião, porque está em busca de algo que não conhece, mas espera descobrir. Vocês estão aqui porque desejam encontrar felicidade, porque todos, de uma forma ou de outra, estão sofrendo. Há uma contínua perturbação acontecendo em nossas mentes e corações, nós estamos insatisfeitos, incompletos, ansiando por respostas. Explicações contínuas estão sendo dadas para nossos inúmeros sofrimentos, e então vocês vêm aqui para saber se vocês podem obter algo em troca de sua busca. Ao participarem desta palestra, vocês esperam encontrar uma resposta para os seus problemas, descobrir a causa do seu sofrimento.
Agora, geralmente, o que acontece quando vocês sofrem? Vocês querem um remédio. Quando enfrentam um problema, vocês querem uma solução. Quando há uma dor, vocês querem saná-la. Portanto, vão de um remédio para outro. Vocês sofrem e querem descobrir qual é o remédio para esse sofrimento, então buscam incessantemente novas instruções, experiências, remédios, explicações, sistemas, crenças, mudam suas seitas continuamente – ou seja, vocês estão indo de uma prisão para outra, estão batendo em vão contra estas grades tentando descobrir o porquê do sofrimento; e o tempo todo, sua mente e seu coração estão meramente buscando um remédio, uma explicação. Mas vocês nunca encontrarão a resposta; porque, o que acontece quando vocês estão sofrendo? Sua necessidade imediata é que o sofrimento seja aliviado, que a dor seja aliviada, então vocês aceitam o primeiro remédio que é dado, sem examiná-lo adequadamente, sem descobrir realmente seu verdadeiro significado. Psicologicamente, vocês o aceitam porque estabeleceram uma esperança; e essa esperança cega e, portanto, não há compreensão clara desse remédio. Se vocês pensarem sobre isso, perceberão que isso é um fato. Vocês procuram um médico, ele lhes dá um remédio. Vocês nunca perguntam a ele qual é a verdadeira natureza desse remédio. Tudo com o que vocês estão preocupados é que a dor desapareça.
Agora vocês estão aqui, nesta reunião, com essa mesma atitude mental se estiverem buscando algo. Bem, receio que se vocês estão aqui por curiosidade, não tenho muito a dizer. Mas se vocês estão aqui para descobrir – se estão procurando um remédio, então ficarão desapontados, porque não quero dar um remédio, uma explicação; mas considerando as coisas juntos, raciocinando juntos descobriremos qual é a causa do sofrimento.
Portanto, para descobrirem qual é a causa do sofrimento, não procurem um remédio, mas tentem descobrir qual é a causa do sofrimento. Podemos lidar com ele superficialmente, sintomaticamente; mas assim não descobriremos a causa real, básica, fundamental. E nós só podemos descobrir a causa do sofrimento se não estivermos criando uma barreira através do desejo imediato de nos livrarmos da dor. Por exemplo, se vocês perderem alguém a quem amam muito, haverá um intenso sofrimento. Então um remédio lhes será oferecido – a ideia de que a pessoa vive do outro lado, a ideia de reencarnação e assim por diante. Vocês aceitarão esse remédio para o seu sofrimento, mas essa tristeza ainda permanecerá. Essa solidão, esse vazio ainda existirão; só que vocês o cobrirão com uma explicação, com um remédio, com uma droga superficial. Considerando que, se vocês realmente tentassem descobrir qual é a causa desse sofrimento, então vocês examinariam, tentariam descobrir todo o significado do remédio que está sendo oferecido, seja ele a ideia de que ela vive do outro lado ou a crença na reencarnação. Para quem se encontra nesse estado mental, quando há sofrimento, existe agudeza de pensamento, questionamento intenso. E esse questionamento intenso é realmente o que causa sofrimento, não é? Se vocês viveram junto com sua esposa, com seu irmão ou qualquer outra pessoa, e essa pessoa morreu, então vocês estiveram face a face com sua própria solidão, o que criou em sua mente a atitude questionadora – a plena consciência dessa solidão. Esse momento de percepção aguda, de plena consciência, foi o instante de descobrir qual é a causa do sofrimento.
Agora, para mim, para descobrirmos a causa do sofrimento, deve haver aquele estado agudo da mente e do coração que estão buscando, que estão tentando descobrir. Nesse estado, vocês perceberão que a mente e o coração se tornaram escravos do ambiente. A mente, na grande maioria das pessoas, nada mais é do que o reflexo do mundo exterior. A mente e o coração são o mundo exterior, dependem de suas condições; e enquanto a mente for escrava do ambiente, deve haver sofrimento, deve haver conflito contínuo do indivíduo contra a sociedade; e o indivíduo somente estará livre do ambiente quando, questionando o ambiente, vencer essa limitação imposta a ele. Ou seja, é somente quando vocês compreendem o verdadeiro significado de cada ambiente, o verdadeiro valor do mundo exterior imposto sobre vocês pela sociedade, pelas religiões, que vocês atravessam essa limitação imposta e, portanto, nasce a verdadeira inteligência.
Afinal, a pessoa só é infeliz porque não há inteligência, que é compreensão. Quando vocês compreendem um problema, vocês não estão mais em conflito, não estão mais limitados por aquilo que lhes foi imposto pela autoridade, pela tradição, pelos preconceitos profundamente enraizados. Portanto, a inteligência é necessária para sermos supremamente felizes e, para despertarmos essa inteligência, a mente deve estar livre do mundo exterior. As inúmeras incrustações criadas pelas religiões e pela sociedade, ao longo dos tempos, tornaram-se nosso mundo. Vocês só podem se livrar do ambiente que os indivíduos criaram quando compreenderem seus padrões, seus valores, seus preconceitos, suas autoridades. E assim, vocês começam a descobrir qual é a causa fundamental do sofrimento, que é a falta de verdadeira inteligência. E essa inteligência não pode ser descoberta por algum processo milagroso, mas somente através de uma consciência contínua e, portanto, um questionamento contínuo, tentando descobrir o falso e o verdadeiro no ambiente colocado ao nosso redor.
Recebi algumas perguntas e vou tentar respondê-las nesta tarde.
Pergunta: Você acredita em Deus? Você é ateísta?
Krishnamurti: Presumo que todos vocês acreditam em Deus. Deve ser assim porque todos vocês são cristãos, pelo menos afirmam ser.
Agora, por que vocês acreditam em Deus? Por favor, vou responder à pergunta em seguida, então não me chamem de ateu ou teísta. Por que vocês acreditam em Deus? O que é uma crença? Vocês não acreditam em algo que é óbvio, como a luz do sol, como a pessoa sentada ao seu lado; vocês não precisam acreditar nisso. Considerando que, sua crença em Deus não é real. É alguma esperança, alguma ideia, algum desejo preconcebido que nada tem a ver com a realidade. Se vocês não acreditam, mas realmente se tornam conscientes dessa realidade em sua vida, como vocês estão conscientes da luz do sol, então toda a sua conduta na vida será diferente. No momento, sua crença nada tem a ver com sua vida diária. Então, para mim, se vocês acreditam ou não em Deus é pouco importante. (Aplausos) Por favor, não se incomodem em aplaudir. Há muitas perguntas para responder.
Portanto, para mim, sua crença em Deus, ou sua descrença em Deus, são a mesma coisa, porque não têm realidade. Se vocês estivessem realmente conscientes da verdade, como estão conscientes daquela flor, se vocês estivessem conscientes da verdade, como estão conscientes do ar fresco ou da falta de ar fresco, então toda a sua vida, toda a sua conduta, todo o seu comportamento, suas próprias emoções, seus próprios pensamentos seriam diferentes. Quer vocês se chamem de crentes ou descrentes, através de sua conduta vocês não estão demonstrando isso. Então, se vocês acreditam ou não em Deus, é de muito pouca importância. É apenas uma ideia superficial imposta pelas condições, pelo ambiente através do medo, através da autoridade, através da imitação. Portanto, quando vocês perguntam: “Você acredita em Deus? Você é ateísta?”, não posso responder categoricamente; porque, para vocês, a crença é muito mais importante do que a realidade. Eu afirmo que existe algo imenso, imensurável, ilimitado. Existe uma inteligência suprema, mas vocês não podem descrevê-la. Como vocês podem descrever o sabor do sal se nunca o provaram? E são as pessoas que nunca provaram o sal, que nunca estiveram conscientes desta imensidão em suas vidas que começam a questionar se eu acredito ou não acredito, porque para elas a crença é muito mais importante do que aquela realidade que elas poderiam descobrir se vivessem corretamente, verdadeiramente. E como elas não querem viver verdadeiramente, acham que a crença em Deus é algo essencial para sermos verdadeiramente humanos.
Então, para mim, ser teísta ou ateísta são ambos absurdos. Se vocês soubessem o que é a verdade, o que é Deus, vocês não seriam teístas nem ateístas, porque, nesse conhecimento, a crença é desnecessária. É o homem que não conhece, que apenas tem esperança e supõe, que recorre à crença ou à descrença para sustentá-lo e levá-lo a agir de determinada maneira.
Agora, se vocês abordarem essa questão de maneira bem diferente, vocês descobrirão por si mesmos, como indivíduos, algo real, algo que está além de todas as limitações das crenças, além da ilusão das palavras. Mas isso – a descoberta da verdade ou Deus – exige grande inteligência, que não é afirmação de crença ou descrença, mas o reconhecimento dos obstáculos criados pela falta de inteligência. Então, para descobrirmos Deus ou a verdade – e eu afirmo que tal coisa existe, que eu a realizei – para recebermos isso, para realizarmos isso, a mente deve estar livre de todos os obstáculos que foram criados ao longo dos tempos, que se baseiam na autoproteção e segurança. Vocês não podem se libertar da segurança apenas dizendo que estão livres. Para romper esses obstáculos, vocês precisam ter muita inteligência, não apenas intelecto. Para mim, inteligência é mente e coração em plena harmonia. Assim, vocês descobrirão por si mesmos, sem perguntar a ninguém, o que é essa realidade.
Agora, o que está acontecendo no mundo? Vocês têm o Deus cristão, os Deuses hindus, os muçulmanos com sua concepção particular sobre Deus, cada pequena seita com sua verdade particular. E todas essas verdades estão se tornando como muitas doenças no mundo, estão separando as pessoas. Essas verdades, nas mãos de poucos, estão se tornando meios de exploração. Vocês vão a cada uma, uma após a outra, experimentando todas, porque começam a perder todo o senso de discriminação, porque estão sofrendo e querem um remédio. E vocês aceitam qualquer remédio que seja oferecido por qualquer seita, seja ela cristã, hindu ou qualquer outra seita. Então, o que está acontecendo? Seus Deuses estão dividindo vocês, suas crenças em Deus estão dividindo vocês. E ainda assim vocês falam sobre a irmandade dos homens, da unidade em Deus. Vocês estão negando exatamente aquilo que querem descobrir, porque vocês se apegam a essas crenças como os melhores meios de destruir a limitação, ao passo que elas apenas a intensificam.
Essas coisas são tão óbvias. Se vocês são protestantes, vocês têm horror ao catolicismo romano; e, se são católicos romanos, vocês têm horror a todas as outras. Isso acontece em todo lugar, não apenas aqui. Na Índia, entre os maometanos, entre todas as seitas religiosas isso acontece; porque, para todos, a crença – esta coisa cruel – é mais vital, mais importante do que a descoberta da verdade, que é a verdadeira unidade. Portanto, as pessoas que acreditam tanto em Deus não estão realmente apaixonadas pela vida. Elas estão apaixonadas por uma crença, não pela vida e, portanto, seus corações e mentes murcharam, se tornaram nada, vazios, superficiais.
Pergunta: Você acredita em reencarnação?
Krishnamurti: Antes de tudo, não sei quantos de vocês estão familiarizados com a ideia de reencarnação. Explicarei brevemente o que isso significa. Significa que para alcançar a perfeição, você deve passar por uma série de vidas, acumular cada vez mais experiência, cada vez mais conhecimento até chegar a essa realidade, a essa perfeição. Em termos breves e simples, sem entrar nas sutilezas disso, isto é reencarnação: a ideia de que o “eu”, a entidade, o ego, assume uma série de formas, vida após vida até que se torne perfeito.
Agora, não vou responder se acredito ou não, porque quero mostrar que a reencarnação é pouco importante. Não rejeitem imediatamente o que eu disser. O que é o ego? O que é esta consciência que chamamos de “eu”? Vou lhes dizer o que é e, por favor, examinem, não rejeitem. Vocês estão aqui para compreender o que estou dizendo, não para criarem uma barreira entre vocês e eu através de suas crenças. O que é o “eu”, esse ponto focal que vocês chamam de “eu”, essa consciência que a mente está continuamente percebendo? Isto é, quando vocês estão conscientes do “eu”? Quando vocês estão conscientes de si mesmos? Somente quando estão frustrados, quando estão impedidos, quando enfrentam uma resistência; caso contrário, vocês estarão supremamente inconscientes de seu pequeno ego. Não é assim? Vocês apenas estão conscientes de si mesmos quando há um conflito. Então, como vivemos apenas em conflito, estamos conscientes dele na maior parte do tempo; e, portanto, existe essa consciência, essa concepção de reencarnação que nasce do “eu”. O “eu”, nesses conflitos, nada mais é do que a consciência de si mesmo como uma forma com um nome, com certos preconceitos, com certas peculiaridades, tendências, faculdades, anseios, frustrações; e isso, vocês acham, deve continuar, crescer e atingir a perfeição. Como o conflito pode atingir a perfeição? Como essa consciência limitada pode atingir a perfeição? Ela pode se expandir, se desenvolver, mas não será perfeita; por mais ampla e abrangente que seja, seus fundamentos são conflito, incompreensão, obstáculo. Então, vocês dizem a si mesmos: “Devo viver como uma entidade além da morte, portanto devo voltar até alcançar a perfeição”.
Agora, vocês dirão: “Se você remover essa concepção do ‘eu’, qual é o ponto focal da vida?”. Espero que vocês estejam acompanhando isso. Vocês dirão: “Se remover, libertar a mente dessa consciência de mim mesmo como um ‘eu’, então o que resta?” O que resta quando vocês estão supremamente felizes, criativos? Resta apenas felicidade. Quando vocês estão realmente felizes ou quando estão muito apaixonados, não existe “eu”. Existe aquele tremendo sentimento de amor, aquele êxtase. Eu digo que isso é o real, todo o resto é falso.
Então, vamos descobrir o que cria esses conflitos, o que cria esses obstáculos, esse atrito contínuo; vamos descobrir se é artificial ou real. Se for real, se essa fricção for o próprio processo da vida, então a consciência do “eu” é real. Agora, eu digo que essa fricção é falsa, que não existiria em uma humanidade onde houvesse um planejamento bem-organizado para as necessidades humanas, onde houvesse afeto verdadeiro. Assim, vamos descobrir se o “eu” é a falsa criação de um falso ambiente, de uma falsa sociedade ou se o “eu” é algo permanente, eterno. Para mim, essa consciência limitada não é eterna. Ela é o resultado de um ambiente e crenças falsos. Se vocês estivessem fazendo o que realmente querem fazer na vida, não sendo forçados a fazer algum trabalho específico que não gostam, se vocês estivessem seguindo sua verdadeira vocação, se realizando em sua verdadeira vocação, então o trabalho não seria mais um atrito. Um pintor, um poeta, um escritor, um engenheiro que realmente ama o seu trabalho, para ele a vida não é um fardo.
Mas seu trabalho não é sua vocação. O ambiente e as condições sociais estão forçando vocês a fazerem um determinado trabalho, quer vocês gostem ou não, então isso já cria um atrito. Além disso, certas autoridades estabeleceram determinados padrões morais, vários ideais como sendo verdadeiros, falsos, virtuosos e assim por diante; e vocês os aceitam. Vocês assumiram esta máscara sem compreendê-la, sem descobrir seu valor correto e, portanto, criaram atrito. Assim, gradualmente, toda a sua mente é deformada, corrompida, estará em conflito até que vocês se tornem conscientes desse “eu”. Portanto, vocês começam com uma ilusão, produzida por um ambiente errado e, portanto, obtêm uma resposta errada.
Portanto, para mim, se a reencarnação existe ou não é pouco importante. O que importa é a realização, que significa alcançar a perfeição. Vocês não podem se realizar no futuro. A realização não é um processo de tempo. A realização está no presente. Então, o que está acontecendo? Através do atrito, através do conflito contínuo, a memória é criada, a memória como o “eu” e o “meu”, que se torna possessividade. Essa memória tem muitas camadas e constitui essa consciência que chamamos de “eu”. Eu afirmo que esse “eu” é o falso resultado de um falso ambiente e, portanto, seus problemas, suas soluções são completamente falsos, ilusórios. Considerando que, se vocês, como indivíduos, começarem a despertar para as limitações impostas a vocês pela sociedade, pelas religiões, pelas condições econômicas, começarem a questionar, então vocês criarão um conflito, assim vocês dissiparão essa pequena consciência que vocês chamam de “eu”; então vocês saberão o que é essa realização, esse viver criativo no presente.
Em outras palavras, muitos cientistas afirmam que a individualidade, essa consciência limitada, existe após a morte. Eles descobriram o ectoplasma e todo o resto, e dizem que a vida existe após a morte. Vocês terão que acompanhar isso com um pouco de cuidado; espero que tenham acompanhado a outra parte, caso contrário, vocês não vão compreender. A individualidade, essa consciência, essa autoconsciência limitada é um fato na vida. É um fato em suas vidas, não é? Ela é um fato, mas não tem realidade. Vocês estão constantemente autoconscientes e, isso é um fato, mas como mostrei a vocês, ela não tem realidade. É apenas o hábito de séculos de um ambiente falso que a converteu em um fato de algo que não é real. E embora esse fato possa existir, como realmente existe, enquanto ele continuar não pode haver realização. E afirmo que a realização da perfeição não está no acúmulo de virtudes, nem no adiamento, mas na plena harmonia de viver no presente. Senhores, suponham que vocês estejam com fome e eu lhes prometo comida na semana que vem, qual o valor disso? Ou suponham que vocês perderam alguém a quem amam muito, mesmo que lhe digam ou mesmo que vocês saibam, por si mesmos, que ela vive do outro lado, o que isso significa? O que importa e, o que acontece na realidade, é que existe esse vazio, essa solidão no coração e na mente, esse imenso vácuo. E vocês pensam que podem fugir disso, que podem escapar disso através do conhecimento de que seu irmão, sua esposa ou seu marido ainda vive. Mas ainda existirá morte nessa consciência, ainda existirá uma limitação nessa consciência, um vazio, uma perturbação contínua de tristeza. Considerando que, se vocês libertarem a mente dessa consciência do “eu” através da descoberta dos valores corretos do ambiente – os quais ninguém pode lhes dizer – então vocês conhecerão por si mesmos aquela realização que é a verdade, que é Deus ou qualquer nome que vocês queiram dar. Mas através do desenvolvimento dessa autoconsciência limitada, que é o resultado falso de uma causa falsa, vocês não descobrirão o que é a verdade ou o que é Deus, o que é a felicidade, o que é a perfeição; porque, nessa autoconsciência, sempre há conflito contínuo, esforço contínuo, miséria contínua.
Pergunta: Você é o Messias?
Krishnamurti: Será que isso é realmente importante? Essa é uma das perguntas que me fazem em todos os lugares que vou. Jornalistas me perguntam isso porque querem escrever uma matéria; audiências me perguntam porque desejam saber, porque pensam que uma autoridade poderá convencê-las. Agora, eu nunca neguei nem afirmei que sou o Messias, que sou o Cristo que voltou; isso não importa. Ninguém pode lhes dizer. Mesmo que eu lhes respondesse, isso seria totalmente sem valor, então não vou lhes responder. Para mim, essa é uma questão irrelevante, sem importância, inútil. Afinal, quando vocês veem uma escultura maravilhosa, ou uma pintura extraordinária, há uma alegria; mas receio que a maioria de vocês esteja interessada em quem fez o quadro, em quem é o escultor. Vocês não estão realmente interessados na pureza da ação, seja na confecção de uma imagem, de uma estátua ou no campo do pensamento; vocês estão interessados em saber quem está falando. Isso indica que vocês não têm a capacidade de descobrir o mérito intrínseco de uma ideia, mas estão preocupados com quem fala. E receio que um esnobismo esteja sendo cultivado cada vez mais, um esnobismo espiritual, assim como existe um esnobismo mundano, mas toda forma de esnobismo é a mesma coisa.
Portanto, amigos, não se preocupem com isso, mas tentem descobrir se o que estou dizendo é verdadeiro; e, ao tentarem descobrir se o que estou dizendo é verdadeiro, vocês se libertarão de toda autoridade, que é uma coisa perniciosa. Para seres humanos realmente criativos e inteligentes, não existe autoridade. Para descobrirem se o que estou dizendo é verdade, vocês não podem abordar isso pela mera oposição ou dizendo: “Disseram-nos que isto é verdade. Certos livros disseram isto e aquilo. Nossos guias espirituais disseram isso.” Vocês sabem que isto é a última coisa: “Nossos guias espirituais disseram isso.” Não sei o porquê de vocês darem mais importância aos espíritos que estão mortos do que aos vivos. Vocês sabem que os vivos podem contradizê-los, então vocês não dão muita atenção a eles; enquanto os espíritos, vocês sabem, eles sempre podem enganar.
Nós treinamos nossas mentes não para apreciar uma coisa por si mesma, mas para apreciar por quem criou, quem pintou, quem falou. Assim, nossas mentes e corações se tornam cada vez mais vazios, superficiais; e nisso não há afeto nem pensamento real e razoável, mas apenas massas de preconceitos.
Pergunta: O que é espiritualidade?
Krishnamurti: Eu digo que é uma vida harmoniosa. Agora, esperem um pouco. Explicarei o que quero dizer. Vocês não podem viver harmoniosamente se são nacionalistas. Como vocês poderiam? Se vocês têm consciência étnica ou de classe, como vocês podem viver de forma inteligente, suprema, livre? Como vocês podem viver harmoniosamente quando são possessivos, quando existe esta ideia de “meu” e “seu”? Como vocês podem viver de maneira inteligente e, portanto, harmoniosa quando estão presos por crenças? Afinal, a crença é apenas uma fuga do conflito atual. Um homem que está em imenso conflito com a vida, que quer compreendê-la, que não tem crenças, está em processo de experimentação; ele não estabelece conclusões e, portanto, continua com o experimento. Um cientista não começa com uma crença em seus experimentos, ele simplesmente começa a experimentar. E um homem que está limitado pela autoridade, social ou religiosa, certamente não pode viver harmoniosamente e, portanto, espiritualmente, de forma inteligente. Então a autoridade é meramente o processo de imitação, falsidade. Um homem cheio de pensamentos está livre de autoridade; porque a autoridade apenas o transforma em uma máquina imitativa, em uma engrenagem, seja em uma máquina social ou religiosa. Um homem assim pode viver harmoniosamente; e, nessa harmonia, sua mente e seu coração são naturais, sãos, plenos, completos, não sobrecarregados pelo medo.
Pergunta: O estudo da música, ou da arte em geral, é valioso para quem deseja alcançar a realização da qual você fala?
Krishnamurti: A pergunta, em outras palavras, refere-se a alguém que, por exemplo, ouve música para receber algo em troca? Certamente, a música não é uma mercadoria, algo para ser comercializado. Vocês ouvem música para se deliciarem, não para receber algo de volta. Não é como uma loja. Certamente, toda a nossa ideia de realização da verdade, ou de viver em êxtase, não consiste em uma acumulação contínua de objetos, ideias, sensações. Vocês contemplam uma bela pintura, uma obra arquitetônica – qualquer uma dessas coisas – porque as apreciam, não porque receberão algo de volta. Essa é a verdadeira atitude materialista, a atitude de troca, comércio. Essa é a nossa abordagem da realidade, essa é a nossa abordagem de Deus. Vocês vão a Deus com orações, flores, confissões, sacrifícios, porque esperam receber algo em troca. Portanto, seus sacrifícios, orações, súplicas não têm valor. É como um homem que é gentil porque vocês vão dar algo a ele. Todo o processo de civilização é baseado nisso. O amor se tornou uma mercadoria a ser comercializada. A espiritualidade, ou a realização da verdade, é algo que vocês buscam em troca por fazerem alguma ação correta. Senhores, não é uma ação justa quando vocês se comportam de maneira gentil esperando receber algo de volta.
Pergunta: Se os sacerdotes, as igrejas e outras organizações similares estão agindo com a humanidade no sentido de dar um tratamento emergencial, aliviar os sintomas até que o Grande Médico chegue para lidar com a causa, isso é errado?
Krishnamurti: Então vocês fazem dos sacerdotes e das religiões como o primeiro passo. É isso? Vocês estão esperando que alguém venha e lhes revele a causa de seus problemas? Tanto quanto posso entender, vocês estão dizendo: “Como há tantos sintomas, como estamos sofrendo superficialmente, ou seja, estamos lidando com os sintomas, é necessário ter os sacerdotes e as igrejas”. Agora, é isso que vocês afirmam? Vocês reconhecem isso? Vocês reconhecem e afirmam que igrejas e sacerdotes estão lidando apenas com sintomas? Se vocês realmente reconhecerem isso, então vocês descobrirão a causa. Mas vocês não farão isso. Vocês não afirmam que sacerdotes e igrejas lidam superficialmente, sintomaticamente. Se vocês realmente afirmassem e sentissem isso, então vocês descobririam a causa de seus problemas por si mesmos imediatamente; mas vocês não fazem essa afirmação. Vocês dizem que sacerdotes e igrejas os levarão a descobrir a causa, então essa questão não é verdadeiramente colocada. Para a grande maioria das pessoas, para praticamente todo mundo, as igrejas e os sacerdotes irão nos ajudar a ir para a realidade da verdade. Nós não dizemos que eles lidam com sintomas. Se nós reconhecêssemos isso, os dispensaríamos imediatamente, amanhã. Eu gostaria que o fizessem! Então vocês descobririam. Então ninguém mais precisaria lhes dizer qual é a causa, porque vocês estão agindo de forma inteligente, porque estão começando a questionar, a não aceitar. Assim vocês se tornam indivíduos reais, não máquinas dirigidas pelo ambiente, pelo medo. Uma mudança assim criaria mais consideração, mais afeição, mais humanidade no mundo, não essas terríveis divisões.
Pergunta: Considerando que a sociedade humana deve ser cooperativa e coletiva, qual valor o indivíduo pode ter para esse êxito? A liderança suprime a liberdade individual e torna sua singularidade sem valor.
Krishnamurti: “Considerando que a sociedade humana deve ser cooperativa e coletiva, qual valor o indivíduo pode ter para esse êxito?” Agora vamos descobrir se o indivíduo, tornando-se verdadeiramente individual, não cooperará. Ou seja, vocês não são cooperativos; em vez de serem levados pelas condições a agirem por si próprios, o que, portanto, não é cooperação verdadeira e inteligente, é possível cooperar se tornando verdadeiros indivíduos? Eu afirmo que isso é possível. É realizável se tornando verdadeiros indivíduos, o que trará cooperação natural e verdadeira, sem serem guiados pelas circunstâncias. Então, vamos investigar isso.
Afinal, vocês são indivíduos funcionando com toda a sua capacidade? Porque esse é o verdadeiro indivíduo, não é? Um homem que funciona com plena liberdade. Caso contrário, vocês não são indivíduos, mas meras engrenagens de uma máquina que está sendo conduzida. Então, eu afirmo que somente quando vocês forem verdadeiros indivíduos é que haverá cooperação real. Agora, o que é um indivíduo? Não é um ser humano que é compelido à ação pelo ambiente, pelas circunstâncias. Eu digo que a verdadeira individualidade consiste em libertar a mente do falso ambiente e, portanto, existe cooperação.
Por favor, como já é tarde não posso entrar em detalhes, mas se vocês estiverem interessados, poderão pensar sobre isso. E assim verão que neste mundo, tal como está constituído, cada indivíduo está lutando contra o outro, buscando sua própria segurança, proteção, preservação. Assim não pode haver cooperação. É impossível. Só pode haver cooperação inteligente, humana, criativa – não uma cooperação egoísta – quando vocês, como indivíduos, se tornam seres humanos completos. Isto é, quando vocês perceberem que para ter verdadeira cooperação no mundo, não pode haver busca competitiva por segurança pessoal. Isso significa alterar toda a estrutura de nossa civilização, com seus interesses estabelecidos, com sua possessividade, com suas nacionalidades, seus conflitos étnicos, suas divisões religiosas. Quando vocês, como indivíduos, forem realmente livres, quando perceberem a falsidade e o significado dessas coisas, então vocês se tornarão verdadeiros seres humanos e serão capazes de cooperar inteligentemente; isso é inevitável. O que nos separa são os nossos preconceitos, a nossa falta de percepção dos valores corretos, a nossa falta de percepção de todos esses obstáculos que nós criamos; e é apenas como indivíduos que podemos acabar com esse sistema. Isso significa que vocês não podem ter nenhuma nacionalidade, esse senso de possessividade, embora vocês possam ter roupas, casas. Esse senso de possessividade desaparece quando vocês descobrem suas verdadeiras necessidades, quando toda a sua atitude não é de consciência de classe possessiva. Quando cada indivíduo se interessar pelo bem-estar da humanidade, então poderá haver verdadeira cooperação. Agora não há cooperação porque vocês estão sendo simplesmente conduzidos como muitas ovelhas, em uma direção ou outra, levados pelas circunstâncias. E seus líderes os oprimem porque vocês são apenas meios de exploração. E vocês são explorados porque todo o seu pensamento, toda a sua estrutura é de autopreservação às custas dos outros. E eu digo que existirá verdadeira autopreservação, verdadeira segurança em um plano mundial como um todo; quando vocês, como indivíduos, destruírem essas coisas que estão mantendo as pessoas separadas, que as fazem lutar entre si em guerras contínuas, que são o resultado de nacionalidades e governos soberanos. Eu lhes asseguro, vocês não terão paz, não terão felicidade enquanto essas coisas existirem. Elas apenas trazem mais conflitos, mais guerras, cada vez mais calamidades, dores e sofrimentos. Tais coisas foram criadas pelos senhores e vocês, como indivíduos, devem começar a derrubá-las, a se libertar delas, só então vocês realizarão esse êxtase da vida.
01/04/1934.