https://jkrishnamurti.org/content/montevideo-3rd-public-talk-28th-june-1935

                                                                                                                          Terceira Palestra em Montevideo

Amigos, muitas perguntas me foram enviadas sobre as atuais condições sociais: alcoolismo, prostituição, civilização e assim por diante. Também me perguntaram por que não me filio a certas sociedades e partidos políticos para ajudar o mundo.

Em resposta a todas essas muitas perguntas, sinto que se realmente entendermos o princípio fundamental subjacente à nossa luta humana, então compreenderemos esses problemas e realmente os resolveremos. Precisamos compreender as causas fundamentais da luta e do sofrimento, e então nossa ação inevitavelmente trará uma mudança completa. Todo o nosso interesse deve ser voltado não para a solução de algum problema particular, nem para alguma finalidade específica ou objetivo definido, mas para a compreensão da vida como um todo integrado. Para fazermos isso, as limitações que foram impostas à mente, mutilando o pensamento e a ação, devem ser discernidas e dissolvidas. Se o pensamento estiver realmente livre dos inúmeros impedimentos que lhe impusemos através da nossa busca por segurança, então abordaremos a vida como um todo, e nisso reside grande felicidade.

Agora, a mente cria e se torna escrava da autoridade e, portanto, a ação é constantemente impedida, mutilada, o que é a causa do sofrimento. Se você observar seu próprio pensamento, você verá como ele está preso entre o passado e o presente. O pensamento está continuamente em paralelo, guiando-se pelo passado e se ajustando ao futuro. Assim, a ação se torna incompleta no presente, o que cria em nossas mentes a ideia da não realização, da qual surge o medo da morte, a consideração sobre o além e as muitas limitações nascidas da incompletude. Se a mente puder compreender completamente o significado do presente, então a ação se torna realização sem criar mais conflito e sofrimento, que é apenas o resultado de uma ação limitada, de impedimentos colocados no pensamento pelo medo.

Para liberar o pensamento a fim de que a ação possa fluir sem criar para si limitações e barreiras, a mente deve estar livre dessa imposição contínua do passado e do padrão futuro, que nada mais é do que uma fuga do presente. Por favor, isso não é tão complicado quanto parece. Observe sua própria mente funcionando e você verá que ela se guia pelo passado ou se ajusta a um ideal ou padrão futuro, de modo que o significado do presente fica completamente encoberto. Dessa forma, a ação cria sua própria limitação em vez de libertar o pensamento e a emoção. A ação é constantemente influenciada pelo passado, pelo futuro.

O passado é a tradição, aqueles valores que aceitamos e cujo significado não compreendemos profundamente. Então há valores morais com os quais você mede constantemente suas ações. Se você examinar profundamente esses valores, você perceberá que eles são baseados na autoproteção e segurança. E meramente ajustar a ação a tais valores não é realização nem é moral. Novamente, observe a si mesmo e você verá como a memória está sempre colocando uma limitação em seu pensamento e, portanto, em sua ação. Essa memória é, na verdade, um ajuste de autoproteção à vida, que muitas vezes é chamado de autodisciplina. Tal disciplina nada mais é do que um sistema de defesa contra o sofrimento, uma proteção esperta e uma guarda contra a experiência, a própria vida. Portanto, o passado, que é a tradição, os valores, os hábitos, as memórias, está condicionando o pensamento e, portanto, a ação é incompleta.

O futuro nada mais é do que uma fuga da realidade através de um ideal ao qual tentamos ajustar o presente, a ação imediata. Esses ideais são meramente salvaguardas, esperanças, ilusões nascidas da incompletude e da frustração. Portanto, o futuro está colocando um obstáculo na maneira de agir e na realização. O pensamento, que deveria estar em constante movimento, está se apegando ao passado ou ao futuro, e a partir disso surge essa consciência limitada, o “eu”, que é apenas incompletude.

Agora, para compreender a realidade, o profundo significado do movimento da vida, que é eterno, o pensamento deve estar livre desse apego e da influência do passado e do futuro; a mente deve estar completamente nua, sem qualquer fuga ou apoio, sem o poder de criar ilusão. Nessa clareza, nessa simplicidade nasce, como uma flor, a Verdade, o êxtase da vida.

Interrogante: Intelectualmente, eu compreendo o que você diz, mas como posso colocar isso em ação?

Krishnamurti: Eu duvido, se me permite dizer, que você realmente compreendeu o que eu disse, mesmo intelectualmente; pois quando você fala de compreensão intelectual, você quer dizer que entendeu teoricamente uma ideia, mas não o seu significado profundo, que só pode ser entendido na ação. A maioria de nós quer evitar a ação, porque ela necessariamente cria circunstâncias e condições que geram conflito; e o pensamento, sendo astuto, evita perturbações, sofrimento. Portanto, ele diz a si mesmo: “Eu compreendo intelectualmente, mas como posso colocar isso em ação?” Você nunca pergunta como colocar uma ideia em ação se ela for realmente significativa para você. O homem que diz: “Diga-me como agir”, não deseja pensar profundamente sobre o assunto, mas apenas quer que lhe digam o que fazer, o que cria um sistema pernicioso de autoridade, seguidores e sectarismo.

Receio que a maioria de vocês, depois de ouvir essas palestras, dirá: “Você não nos deu nada prático”. Sua mente está acostumada ao pensamento sistematizado e à ação inconsciente, e você está disposto a seguir qualquer novo sistema que lhe dê mais segurança. Se você pegar uma ideia que apresentei e realmente se aprofundar nela por meio da ação, então você descobrirá a qualidade sempre renovadora da ação completa. E só disso vem o verdadeiro êxtase da vida.

Interrogante: Você acredita na existência da alma? Ela continua a viver infinitamente após a morte do corpo?

Krishnamurti: A maioria das pessoas acredita na existência da alma de uma forma ou de outra. Agora, você não entenderá o que vou dizer se, por defesa, você se opuser apenas ou citar alguma autoridade para sua crença, que é cultivada pela tradição e pelo medo; nem essa crença pode ser chamada de intuição quando é apenas uma vaga esperança.

A ilusão se divide infinitamente. A alma é uma divisão nascida da ilusão. Primeiro há o corpo, depois há a alma que o ocupa e, finalmente, existe Deus ou a realidade: é assim que você divide a vida.

Agora, a consciência limitada do “eu” é o resultado de ações incompletas. E essa consciência limitada está criando suas próprias ilusões e está presa em sua própria ignorância. E quando a mente está livre de sua própria ignorância e ilusão, então há a realidade, não “você” se tornando essa realidade.

Por favor, não aceite o que eu digo, mas comece a questionar e entender como sua própria crença surgiu. Então você verá quão sutilmente a mente dividiu a vida. Você começará a entender o significado dessa divisão, que é uma forma sutil de desejo egoísta de continuidade. Enquanto essa ilusão, com todas as suas sutilezas, existir não poderá haver a realidade.

Como esse é um dos assuntos mais controversos e existe muita ideia preconcebida em relação a ele, é preciso ter muito cuidado para não se deixar influenciar por opiniões a favor ou contra a ideia de alma. Ao compreender a realidade, essa questão sobre se existe ou não uma alma será respondida. Para compreender a realidade, a mente deve estar completamente livre das limitações do medo com seu desejo pela continuidade egoísta.

Interrogante: O que você tem a dizer sobre o problema sexual?

Krishnamurti: Por que o sexo se tornou um problema? É um problema porque perdemos aquela força criativa que chamamos de amor. Como não há amor, o sexo se torna um problema. O amor se tornou mera possessividade, não aquele ajustamento supremamente inteligente à vida. Quando perdemos esse amor e dependemos apenas da sensação, então o amor e o sexo se tornam um problema cruel. Para compreender profundamente essa questão e viver intensamente com amor, a mente deve estar livre do desejo de possuir. Isso requer grande inteligência e discernimento.

Não há soluções imediatas para esses problemas vitais. Se você realmente quer resolvê-los de forma inteligente, você deve alterar as causas fundamentais que criam esses problemas. Mas se você lidar com eles apenas superficialmente, então as ações que surgirem deles criarão problemas maiores e mais complicados. Se você compreender profundamente o significado da possessividade – na qual há crueldade, opressão, indiferença – e a mente se libertar dessa limitação, então a vida não será um problema nem uma escola para aprender; será uma vida para ser vivida completamente, na plenitude do amor.

Interrogante: Você acredita no livre arbítrio, no determinismo ou no carma inexorável?

Krishnamurti: Nós temos a capacidade de escolher, e enquanto isso existir, a liberdade será limitada. Agora, nosso pensamento é condicionado por experiências passadas, memórias, portanto ele não pode ser verdadeiramente livre. Se você quer compreender o eterno presente, se você quer completar sua ação no presente, você deve compreender a causa da limitação, da qual surge essa divisão entre consciência e consciência impedida. É essa consciência limitada, com sua ação impedida, que cria a incompletude, causando sofrimento. Se a ação não cria mais limitações, então há o movimento contínuo da vida.

O carma, ou a limitação da ação no presente, é criado pela consciência impedida de valores, ideais e esperanças que cada um não compreendeu completamente. Somente por meio do profundo discernimento desses obstáculos, a mente pode se libertar da limitação da ação.

Interrogante: Eu sou um entusiasta da frente cristã unida em uma religião centrada em Cristo. Eu admito apenas o valor que as organizações têm em si mesmas e enfatizo o esforço individual para encontrar a salvação pessoal. Você acredita que a frente de união cristã é factível?

Krishnamurti: Toda religião sustenta que há apenas uma religião verdadeira, ela mesma, e tenta trazer para dentro de seu rebanho, para dentro de suas limitações, pessoas que estão sofrendo. Portanto, as religiões criam divisões entre os homens. A questão é: por que você quer algum tipo de religião, sendo religião um sistema organizado de crenças, dogmas e credos? Você se apega a ela porque espera que ela atue como um guia, lhe dando conforto e consolo em momentos difíceis. Assim, a religião organizada se torna um abrigo, uma fuga do impacto contínuo da experiência e da vida. Por meio do seu próprio desejo de proteção, você cria uma estrutura artificial que você chama de religião, que é, em essência, uma droga reconfortante contra a realidade.

Se a mente discernir seu próprio processo de construir abrigos e, portanto, de evitar a vida, então ela começará a se desvencilhar de todos os valores inquestionáveis que agora a limitam. Quando o homem realmente perceber isso, não haverá o espetáculo de uma religião competindo com outras por ele, mas ele estará livre de suas próprias ilusões autocriadas e, portanto, despertará em si mesmo aquela verdadeira inteligência que sozinha destrói todas as distinções artificiais e as muitas crueldades do preconceito.

Interrogante: Suas observações sobre autoridade foram recebidas em alguns setores como um ataque às igrejas. Você não acha que deveria esclarecer para seus ouvintes que a palavra “ataque” está mal aplicada? Suas palavras não deveriam ser melhor compreendidas e consideradas como um meio de iluminação? Pois os ataques não levam ao conflito e a harmonia não é seu objetivo?

Krishnamurti: Tradições, crenças e dogmas não devem ser questionados? Os valores sociais e morais que construímos durante séculos não devem ser questionados e seu significado descoberto? Questionando profundamente surgirá o conflito individual, que despertará a inteligência e não a mera revolta estúpida. Essa inteligência é a verdadeira harmonia. Harmonia não é a aceitação cega da autoridade nem a satisfação fácil com valores inquestionáveis.

Senhor, o que estou dizendo é muito simples. Temos agora ao nosso redor muitos valores, tradições, ideais que aceitamos sem questionar; pois quando começamos a questionar tem que haver ação, e temendo o resultado de tal ação, nós continuamos aceitando, nos subjugando e nos ajustando docilmente a esses falsos valores, que permanecerão falsos enquanto apenas os aceitarmos e não discernimos voluntariamente seu significado. Mas quando começamos a questionar e tentar compreender seu profundo significado, o conflito inevitavelmente surge.

Agora, você não pode compreender o verdadeiro significado dos valores intelectualmente; você só começa a discerni-los quando há conflito, sofrimento. Mas a menos que você esteja profundamente consciente, o sofrimento apenas o levará à busca por conforto. E o homem que lhe dará conforto se tornará sua autoridade e, portanto, você adquirirá outros valores que você novamente aceitará sem questionar, sem pensar. Nesse círculo vicioso, o pensamento se mantém. E nosso sofrimento continua dia após dia até morrermos e, portanto, passamos a ter esperança de que após a morte haverá felicidade. Tal existência, com medo e escravidão à autoridade, é uma vida desperdiçada sem realização.

Se você começar a discernir por si mesmo o profundo significado dos valores que foram estabelecidos, então você descobrirá por si mesmo como viver de forma inteligente e suprema. Essa ação da inteligência é a verdadeira harmonia. Portanto, não busque a mera harmonia, mas desperte a inteligência. Não tente encobrir a desarmonia e o caos existentes, mas compreenda completamente sua causa, que são nossos desejos, buscas e ambições egoístas.

Interrogante: Como você pode falar sobre o sofrimento humano se você mesmo nunca o vivenciou?

Krishnamurti: Nós queremos julgar os outros. Em vez de basear sua compreensão do que eu digo no fato de eu ter sofrido ou não, tome consciência do seu próprio sofrimento e, portanto, veja se o que eu digo tem algum valor. Se não tiver nenhum significado, então o fato de eu ter sofrido ou não, não tem importância alguma. Quando a mente discerne e se liberta da causa do seu próprio sofrimento, então uma vida sem exploração, uma vida de profundo amor, é possível.

Interrogante: Você acredita que há alguma verdade nos fenômenos espiritualistas ou eles são apenas autossugestões?

Krishnamurti: Mesmo depois de você ter examinado o fenômeno espiritualista sob condições muito rigorosas – pois há muito charlatanismo e enganação em tudo isso – qual o valor disso? O que está por trás dessa pergunta? A maioria de nós quer saber isso porque deseja ser guiada ou porque queremos entrar em contato com aqueles que perdemos, esperando assim nos libertar da solidão ou encobrir nossa agonia com explicações. Portanto, para a maioria de nós, o desejo por trás dessa pergunta é: “Como posso escapar do sofrimento?” Você quer ser guiado pela vida para não sofrer, para não entrar em conflito com a realidade. Portanto, você abandona a autoridade de uma igreja, de uma seita ou de uma ideia e confia nessa nova autoridade espiritualista. Mas a autoridade ainda o guia e o domina como antes. Sua vida, através do controle, através da fuga, se torna cada vez mais superficial, cada vez mais incompleta. Por que dar mais autoridade, mais compreensão aos mortos do que aos vivos?

Onde há um desejo de ser guiado, de buscar segurança na autoridade, a vida inevitavelmente se torna um grande sofrimento e um grande vazio. A riqueza da vida, a profundidade da compreensão, a bem-aventurança do amor só podem vir através do discernimento do falso, daquilo que é ilusório.

Interrogante: Devemos destruir o desejo?

Krishnamurti: Queremos destruir o desejo porque ele cria conflito e sofrimento. Você não pode destruir o desejo; se pudesse, você se tornaria apenas uma concha vazia. Mas vamos descobrir o que causa sofrimento, o que nos leva a querer destruir nosso desejo.

O desejo está continuamente tentando ser realizado, e em sua realização há dor, sofrimento e alegria. Assim, a mente se torna apenas um depósito de memórias para guiar, para advertir. Para que o desejo, em sua realização, não crie sofrimento, a mente começa a se limitar e a se proteger com valores e imposições baseados no medo. Assim, gradualmente, o desejo se torna cada vez mais limitado, estreito, e a partir dessa limitação surge o sofrimento que nos impele a conquistar e destruir o desejo ou nos força a encontrar um novo objetivo para o desejo.

Se destruirmos o desejo, haverá morte. E se apenas mudarmos o objetivo do desejo, encontrarmos novos ideais para o desejo, então isso será apenas uma fuga do conflito e, portanto, não poderá haver riqueza nem completude. Se não houver busca de objetivos ou ideais limitados e egoístas, então o desejo é em si o movimento contínuo da vida.

Interrogante: Se, como você diz, a imortalidade existe, admitimos que, sem desejá-la, nós a realizaremos inevitavelmente no curso natural da experiência, não criando, portanto, exploradores. Mas se a desejarmos, então faremos daqueles que nos oferecem a imortalidade nossos exploradores conscientes ou inconscientes. É isso que você quer transmitir?

Krishnamurti: Eu tentei explicar como nós criamos as autoridades, que necessitam explorar. Você cria autoridades em seu desejo de continuidade egoísta, que você chama de imortalidade. Se você deseja que essa consciência limitada, o “eu”, continue, então aquele que lhe dá a promessa de sua persistência se torna sua autoridade, o que provoca a formação de uma seita e assim por diante.

Agora, a imortalidade não é uma continuação egoísta. A realização daquilo que é imensurável só pode ocorrer quando a mente não está mais presa à sua própria consciência limitada, quando não está mais buscando sua própria segurança. Enquanto a mente estiver buscando sua própria proteção, conforto, criando sua própria limitação particular, não poderá haver o devir eterno.

Interrogante: O homem é de algum modo superior à mulher?

Krishnamurti: A pergunta certamente foi feita por uma mulher! A inteligência não é superior nem inferior, ela é única. Portanto, não vamos discutir quem é superior ou inferior, mas sim descobrir como despertar essa divindade. Você só pode fazer isso por meio da atenção constante. Onde há medo, há submissão às muitas estupidezes e compulsões da religião, da sociedade, da sua esposa ou marido, do seu vizinho. Mas quando a mente, em sua própria consciência e sofrimento, penetra profundamente na ilusão da segurança com seus muitos valores falsos, então há inteligência, um eterno devir.

28 de junho de 1935.