https://jkrishnamurti.org/content/montevideo-1st-public-talk-21st-june-1935

                                                                                                                             1ª Palestra em Montevideo

Amigos, existe uma arte distinta de ouvir, especialmente aquelas ideias às quais talvez não estejamos muito acostumados. Portanto, peço-lhes que ouçam sem preconceitos o que vou dizer, o que não significa que devam ter uma mente negativa. Alguns de vocês aqui podem pensar que já possuem um modo de vida definido e, portanto, acham que não é muito importante ouvirem com atenção. E para aqueles que vieram por curiosidade há muito pouco a ser dito.

Para ouvir corretamente não deve haver oposição nem antagonismo. A maioria das pessoas tem um certo condicionamento, de tradição, preconceito, esperança e medo, que usa como defesa; e isso, que é apenas oposição, elas chamam de crítica. Se, por exemplo, você é cristão ou pertence a alguma outra religião ou a algum partido político, você tentará, com seus preconceitos particulares, se opor ao que vou dizer. Isso não é uma crítica verdadeira. Mas existe uma forma ativa de crítica que exige uma mente clara e aberta – estar consciente dos próprios preconceitos, das próprias limitações e, ao mesmo tempo, tentar descobrir o valor intrínseco do que o orador está dizendo. Assim, deixando de lado o pano de fundo da tradição e do hábito de pensamento em que a mente reside constantemente, acompanhe criticamente sem aceitar o que vou dizer.

O que tenho a dizer é fundamentalmente simples, não muito filosófico, metafísico ou complicado. Como venho da Índia, as pessoas tendem a pensar que o que digo é metafísico e impraticável e, portanto, muitas vezes deixam de lado as ideias que tento apresentar. Agora, para compreender o caos atual, com todas as suas misérias, conflitos e dificuldades, é necessária uma crítica real; não aceitação, mas uma forma ativa de exame crítico. Se vocês simplesmente aceitarem um novo conjunto de ideias ou um novo sistema de pensamento, vocês estarão apenas substituindo o antigo pelo novo e, portanto, não compreenderão fundamentalmente a causa do sofrimento e dos muitos problemas que cada um de vocês enfrenta.

A minha intenção não é apresentar uma nova teoria, um novo sistema de pensamento ou uma nova prática disciplinar, mas despertar essa compreensão do presente; pois ao compreender o caos e o sofrimento existentes em que o homem está preso, ele saberá por si mesmo como viver de forma completa, inteligente e divina.

Em seu sofrimento, você tende a recorrer à autoridade estabelecida ou a criar uma nova, o que não o ajudará de forma alguma a compreender e a se libertar da causa do sofrimento. Mas se você realmente entender o significado do presente, então você não recorrerá a nenhuma autoridade, mas sendo inteligente, ativamente consciente, você será capaz de se ajustar constantemente ao movimento da vida.

Portanto, se cada pessoa puder compreender o presente, então ela descobrirá por si mesma como viver de forma inteligente e suprema. Ou seja, ao descobrir e erradicar a causa do caos existente, do sofrimento humano, da exploração espiritual e econômica, cada pessoa se realizará verdadeiramente.

Na sua busca por segurança e conforto, o homem separou consciente ou inconscientemente a vida em duas partes, podemos chamar essas partes, no momento, de material e espiritual. O material – o mundo econômico ou social – se baseia inteiramente na aquisitividade, que desenvolveu, naturalmente, as distinções de classe. Ou seja, cada um na sua busca individual pela sua própria segurança, pelo seu próprio conforto, criou um sistema econômico e social de exploração implacável. A partir daí nasce a doença do nacionalismo, com todos os seus absurdos e crueldades, que provoca guerras e divisões entre as pessoas. Os meios de adquirir riqueza, a máquina, nas mãos de poucos tem gerado imenso sofrimento. E para manter esse interesse foram formados partidos políticos separados que desconsideram inteiramente o homem, usando-o apenas para promover seu próprio poder e importância. De fato, esse sistema se baseia inteiramente na segurança individual e familiar, o que inevitavelmente cria uma exploração implacável, distinção de classes, nacionalismo e guerras. Nesta complicada tradição de falsos valores que ele construiu tão diligentemente ao longo dos séculos, o indivíduo está preso. Brevemente, sem entrar em muitos detalhes que você pode pensar por si mesmo, esse sistema de pensamento e hábito está influenciando, dominando, coagindo o indivíduo a se conformar a esta civilização de aquisição.

No mundo espiritual também existe aquisitividade, só que de uma forma diferente. Talvez para alguns de vocês isso possa parecer estranho, embora possam estar familiarizados com a forma material comum de aquisitividade. Como isso pode ser novo para você, ouça com atenção e cuidado.

No mundo espiritual, a busca pela segurança se expressa através do desejo de imortalidade. Em cada um existe o desejo de ser permanente, eterno. Isso é o que todas as religiões prometem, uma imortalidade no além, que é apenas uma forma sutil de segurança egoísta. Agora, qualquer um que prometa esta continuidade egoísta, que você chama de imortalidade, consciente ou inconscientemente se torna sua autoridade. Olhe para as diversas religiões do mundo e você verá que devido ao seu próprio desejo de segurança, de salvação, de continuidade, você criou uma autoridade sutil e cruel à qual se tornou totalmente escravizado, que está constantemente mutilando seu pensamento, seu amor.

Agora, para interpretar essa autoridade, vocês devem ter mediadores a quem chamam de sacerdotes, que se tornam de fato seus exploradores. (Aplausos) Vocês estão aplaudindo muito rápido – porque vocês são os criadores desses exploradores. (Risos, aplausos) Alguns de vocês podem não criar essas autoridades espirituais conscientemente, mas sutilmente, sem saber estão criando outros tipos de exploradores. Você pode não ir a um sacerdote, mas isso não significa que você não esteja explorando ou sendo explorado.

Onde existe o desejo de segurança, de certeza, há autoridade. E você se entrega inteiramente àquelas pessoas que prometem guiá-lo, ajudá-lo a realizar essa segurança. Portanto, as religiões se tornaram, em todo o mundo, o receptáculo de interesses particulares e de crenças organizadas e fechadas. (Aplausos) Senhores, posso sugerir algo? Por favor, não se preocupem em aplaudir, é uma perda de tempo.

Assim como as religiões prometem a imortalidade, elas também criaram ideais, que se tornaram apenas um meio de fuga do presente. Afinal, o que são todos os seus ideais? Eles apenas oferecem um meio sutil de fuga da realidade. Deixe-me dar um exemplo que talvez deixe isso claro.

Vocês professam o ideal do amor fraternal, e esse é o ideal com o qual a maioria de vocês foi criada. Mas o que está acontecendo na realidade? Existe distinção de classes, de religiões, com suas crenças, dogmas e divisões, e do nacionalismo, com sua exploração e guerras. Portanto, qual é o benefício de seus ideais? Os ideais apenas se tornam drogas que os impedem de pensar com clareza e compreender totalmente o presente.

As religiões, com suas crenças, dogmas e credos, se tornaram enormes barreiras entre os seres humanos, dividindo o homem contra o homem, limitando-o e destruindo sua inteligência. Por favor, entendam o que quero dizer por religião. Quero dizer por religião o pensamento e as crenças organizados que se tornaram receptáculos de interesses particulares e nos quais a autoridade está firmemente enraizada.

Portanto, tendo criado essas duas divisões na vida, a material e a espiritual, nós recorremos, em momentos de grande crise, em momentos de grande sofrimento e miséria, a especialistas nessas duas linhas. Em momentos de intenso sofrimento, nós buscamos conforto nessas autoridades e especialistas. E o que acontece quando você depende de outra pessoa? Gradualmente e inconscientemente, você cria a autoridade, entrega-se inteiramente a ela e se torna apenas uma parte desse sistema de pensamento. E como existem inúmeros especialistas nessas duas linhas, você se torna uma ferramenta nas mãos deles para combater outros especialistas e seus grupos.

Qual sua resposta para tudo isso? Por um lado, você pode dizer que o homem nada mais é do que argila, matéria a ser moldada, que ele é o resultado do ambiente, a ser controlado e moldado. Se for assim, então toda a questão da sua expressão criativa e da sua realização, da sua felicidade inteligente e da sua ação moral, não tem grande importância nem qualquer consequência especial. Se você pensa fundamentalmente que o homem nada mais é do que barro a ser moldado pelas circunstâncias, então você criará circunstâncias, leis, autoridades que controlarão e dominarão implacavelmente a expressão e a ação individual. Ou se o homem não é mero barro a ser condicionado, a ser moldado em uma forma particular, então haverá uma revolução completa nas suas ideias e ações.

Ou seja, senhores, só existem duas possibilidades: uma de domínio e controle completo; e a outra, a criação voluntária de um ambiente adequado para a realização do homem. Você tem que pertencer a uma ou outra, não pode jogar com ambas. Ou você considera o homem apenas como uma entidade social e, portanto, molda e controla implacavelmente toda a sua ação social e criativa. Ou se ele não é apenas isso, mas algo muito maior, então haverá uma revolução fundamental no seu pensamento e ação.  

Se você discernir isso voluntariamente, então sua ação aquisitiva, seu pensamento baseado na segurança passará por uma mudança completa. Se você considerar que o homem tem dentro de si a maior capacidade da inteligência, então você afastará os inúmeros medos, punições e recompensas que o guia e o domina. Mas se você pensa que o homem é apenas barro a ser moldado, então você aumentará todos os medos e punições que irão dominá-lo e coagi-lo.

Portanto, vocês, como indivíduos, terão de descobrir por si mesmos em que sua ação se baseia, se é na compulsão ou na compreensão voluntária. Vemos tanta exploração, tanta miséria e sofrimento, e parece que não encontramos uma resposta abrangente para isso. Ficamos satisfeitos com o remédio do dia. Mas se conseguirmos compreender realmente, fundamentalmente esse problema da compulsão e da dominação, então encontraremos uma resposta verdadeira e duradoura para as muitas dores e agonias da vida. Isso significa que como cada pessoa tem sido tão corrompida, pervertida, limitada pelo ambiente passado e presente, ela deve agora começar a questionar o verdadeiro significado dos inúmeros valores dos quais se tornou escrava. Para fazer isso, deve haver um interesse e alerta contínuos e despertados para libertar a mente de toda pressão e influência, para torná-la clara, simples para que haja um discernimento direto do que é verdadeiro.

Temos três tipos, se assim posso dividir, de expressão individual, egoísta. A primeira é a busca pela imortalidade, o desejo de continuação egoísta, que impede a compreensão completa do presente, a única eternidade. Enquanto a mente estiver buscando sua própria continuidade egoísta, pensando que isso é a imortalidade, não poderá haver o fluxo da realidade, aquela inteligência única que não é sua nem minha. Para compreender e perceber isso, a mente deve estar livre daquela consciência que foi criada através dos muitos obstáculos, da autoridade, através dos valores baseados em medos aquisitivos e autoprotetores. Quando a mente está livre das suas próprias limitações e impedimentos egoístas, quando ela está criativamente vazia, nasce aquela realidade que é imensurável, não para ser discutida, mas para ser experimentada, vivida.

Depois, há aquela aquisitividade egoísta de coisas, aquela possessividade, com todas as suas crueldades e explorações sutis, pela qual a mente busca estabelecer sua própria segurança e conforto.

Finalmente, existe a busca pela sensação.

Agora, se você deseja compreender a Verdade, a mente tem que estar livre desses impedimentos e limitações. Como indivíduos, vocês devem se tornar conscientes, totalmente conscientes de suas ações. Você não pode se entregar à autoridade, aos especialistas, mas deve estar continuamente consciente da sua ação e da causa dela; então a mente discernirá a escravidão, o obstáculo em que o pensamento está preso. Assim, gradualmente, a mente, que agora está mutilada e inconsciente, se tornará consciente e, portanto, descobrirá as limitações que criou para si mesma em busca de sua própria segurança. E quando a mente está totalmente nua, então surge aquela inteligência criativa, esse devir contínuo.

Pergunta: Qual é sua verdade?

Krishnamurti: Não existe sua verdade e minha verdade. Só existe a verdade, e você só poderá compreender sua qualidade única quando a mente estiver livre do “seu” e do “meu”. O “você” e o “eu” são apenas memórias, baseadas na reação autoprotetora e acumulativa contra a inteligência. Quando a mente estiver livre desse sentido de “meu”, então haverá vida, Verdade.

Só existe amor, mas quando você o aprisiona dentro dos muros da possessividade, então ele se torna “seu” e sua beleza rapidamente desaparece.

Pergunta: Se você vive em um eterno agora, tendo aniquilado a ideia do tempo e rompido os laços que o prendem ao passado, como você pode falar do seu passado e das suas experiências anteriores? Essas memórias não são laços?

Krishnamurti: Se a ação nasce de um preconceito, de um obstáculo, então ela cria mais limitações e provoca sofrimento. Mas se a ação for o resultado do discernimento, então ela está sempre se renovando e nunca é limitante. Essa libertação da ação não significa que você não conseguirá se lembrar dos incidentes, mas esses incidentes passados já não controlarão a ação.

Se alguém age tendo como pano de fundo muitos preconceitos, certamente essa ação, sendo impedida, criará uma limitação adicional da mente. Se alguém tem um condicionamento de preconceitos religiosos, então a ação criará conflito no presente. Mas se começarmos a questionar e, portanto, a compreender o significado dos valores, das tradições, dos ideais, das acumulações passadas que constituem o condicionamento, então a mente conhecerá a beleza da ação sem sofrimento. Experimentem o que estou dizendo e vocês saberão. Temos muitos preconceitos, medos, valores acumulativos que estão continuamente impedindo a realização na ação e, portanto, há uma incompletude cada vez maior e o fardo do amanhã.

21 de junho de 1935.