https://jkrishnamurti.org/content/rio-de-janeiro-5th-public-talk-18th-may-1935

                                                                                                                         Quinta Palestra no Rio de Janeiro

Amigos, me disseram que o que eu digo é muito complicado, impraticável e inconcebível na vida cotidiana em que cada um tem que lutar pelo seu próprio sustento. Alguns rejeitam o que eu digo sem pensar, e outros, igualmente sem reflexão, aceitam-no sem maiores investigações, esperando que isso se encaixe no seu sistema já existente. Assim, o poder renovador da ação é negado.

Agora, nós estamos preocupados em viver, e viver implica não só pão, abrigo, roupa e trabalho, mas também amor e pensamento. Não podemos compreender o pleno significado da vida se lidarmos com o problema do trabalho, do amor, do pensamento de forma separada, isolada. Como estão inter-relacionados e são inseparáveis, eles devem ser compreendidos de forma abrangente, como um todo. São apenas as pessoas que estão confortavelmente estabelecidas na vida, que seguem o padrão ou sistema tradicional, que tentam separar o trabalho da vida. E elas esperam superar o conflito que surge dessa divisão considerando cada problema isoladamente.

Existem muitas pessoas ditas espirituais que consideram o trabalho, a ocupação como algo materialista e meramente a ser tolerado. Elas estão preocupadas apenas com a Verdade, Deus. E existem outras que se preocupam apenas em reorganizar a sociedade para o bem-estar do todo. Se quisermos compreender a ação, que é viver, temos de tomá-la como um todo, não dividi-la em compartimentos isolados como faz a maioria das pessoas. Viver é a ação harmoniosa do pensamento, da emoção e do trabalho. E quando esses estão em contradição entre si, então há sofrimento, conflito, desarmonia. Nós estamos buscando – não estamos? – viver harmoniosamente, viver completamente em nossas ações, realizar-nos. Para isso é preciso haver a mais elevada inteligência, que é estar sem medo, não explorar e não buscar recompensa. Daí surge a renovadora liberdade de ação. Cada um está fundamentalmente buscando, tentando viver nessa ação; mas ao procurar descobrir esse movimento harmonioso da vida, a pessoa muitas vezes perde-se em alguma questão sem importância, tal como qual sistema deve seguir, se existem Mestres, a Verdade, Deus.

Por que não vivemos essa ação inteligente e harmoniosa? Se fizermos isso, a vida se tornará simples, supremamente objetiva e criativa. Portanto, por que nós que estamos buscando essa vida harmoniosa – pelo menos há muitos que afirmam constantemente que estão buscando – não fazemos isso? Uma das principais razões é que consideramos os muitos problemas da vida de forma separada, isolada, como tentei explicar. Dessa divisão surge o pensamento falso, que cria a exploração no trabalho, as complicações e as confusões que inibem o amor. Isso só pode ser compreendido e resolvido por meio do pensamento verdadeiro.

Para descobrirmos o que é pensamento verdadeiro, temos que descobrir primeiro o que há de falso em nosso pensamento. Se pudermos conhecer por nós mesmos o que é falso em nosso pensamento, então saberemos naturalmente, sem imposição, o que é verdadeiro. Através da massa de falsas ideias, através da tela de muitas ilusões não pode haver a percepção do que é verdadeiro. Portanto, temos que nos preocupar em tentar descobrir o que é falso.

Agora, o nosso pensamento se baseia no hábito, no hábito de séculos ao qual ele se acostumou. O falso é seguir um padrão, um sistema, se moldar de acordo com um ideal que foi estabelecido como forma de escapar do conflito atual. Enquanto o pensamento seguir um sistema, um hábito ou meramente se conformar a uma tradição estabelecida, a um ideal haverá pensamento falso. Você segue um sistema ou se molda de acordo com um padrão porque existe o medo, o medo do certo e do errado que foi estabelecido em conformidade com a tradição de um sistema. Se o pensamento estiver meramente funcionando no ritmo de um padrão sem compreender o significado do ambiente, haverá medo consciente ou inconsciente, e tal pensamento inevitavelmente levará à confusão, à ilusão e à falsa ação.

O hábito tradicional de pensamento em relação ao trabalho é a busca pela segurança econômica individual, proteção e conforto. Assim, nós desenvolvemos um sistema em todo o mundo em que a exploração se torna justa e a ganância é honesta. Disso surge naturalmente o conflito das classes, nacionalismo e guerras.

A própria base do nosso amor é a possessividade, da qual surgem o ciúme, as complexidades e os problemas do sexo.

Agora, tentar resolver qualquer um desses problemas isoladamente, e não como parte do todo, é criar e perpetuar conflito e sofrimento, surgindo mais ilusões e falsos pensamentos.

Enquanto o pensamento buscar e seguir um padrão, conformar-se a um ambiente que ele não compreendeu e meramente agir por hábito, haverá conflito e desarmonia. Portanto, a primeira coisa, se quisermos realmente compreender a beleza da vida e sua riqueza, é tomarmos consciência do ambiente, tanto do passado quanto do presente, ao qual a mente se apegou. E ao compreender as ilusões que ela criou para sua própria proteção, surge naturalmente, sem que a mente tenha que procurá-la, aquela ação espontânea e inteligente, que é a mais elevada realização da vida.

Tudo isso se aplica àqueles que desejam compreender e viver de forma suprema, não àqueles que apenas procuram conforto, nem aos que estão satisfeitos com explicações, pois as explicações são poeira nos olhos. Portanto, se você quiser encontrar tal vida, deverá haver a purificação da mente através da dúvida, e isso significa a compreensão profunda das tradições e dos ideais, a dissipação das muitas ilusões que a mente criou na busca pela sua própria proteção. Assim, quando há verdadeiro discernimento, há o êxtase do imensurável, que não pode ser imaginado ou preconcebido, mas apenas experimentado.

Interrogante: Não podemos ser guiados, em nossa vida diária, pelos sábios conselhos que nos são dados pelas vozes e espíritos dos mortos?

Krishnamurti: Vejo que alguns de vocês estão impacientes com essa questão; talvez pensem que é estúpido buscar o conselho dos espíritos. Para que essa pergunta também se aplique a outras pessoas, vamos simplificá-la. Alguns de vocês podem não ir às sessões, podem não se entregar à escrita automática, mas não se importam em procurar Mestres, que talvez vivam em um país distante, para aceitar suas mensagens através dos seus mensageiros. Fundamentalmente, qual é a diferença? Nenhuma. Ambas estão buscando orientação de outras pessoas. Alguns tentam entrar em contato com os mortos através dos médiuns, escrita automática e outros meios infantis. E há outros que procuram orientação daqueles a quem chamam de Mestres através dos seus representantes, o que é igualmente infantil. Portanto, por favor, não condenem aqueles que vão a médiuns, que participam de sessões espíritas quando vocês mesmos buscam diligentemente mensagens e sistemas dados por aqueles a quem vocês chamam de representantes dos Mestres. Há outros que dependem de sacerdotes e cerimônias, tradições e costumes para sua orientação. Todos eles estão na mesma categoria.

Agora, por trás dessa questão, se devemos procurar aconselhamento e orientação dos espíritos, dos Mestres através dos seus representantes, dos salvadores através dos seus sacerdotes, está o desejo de se abrigar sob a cobertura da autoridade. Não estamos preocupados, no momento, com a questão de saber se os Mestres e os chamados espíritos existem ou não. Por que vocês buscam orientação e conselho, por que desejam direcionamento? Esse é o problema. Você dá muito mais valor aos mortos, ao oculto, ao passado do que aos vivos e ao presente porque a partir dos mortos, do oculto, do passado sua mente pode esculpir suas próprias imagens agradáveis, e viver com essas ilusões completamente satisfeita; mas o presente e os vivos não o deixarão dormir com contentamento. Portanto, para fugir desse conflito, que nada mais é do que escapar do presente, você busca orientação, conselho. Um homem que busca orientação, um homem que cria ídolos para idolatrar vive com medo. Ele é explorado e sua inteligência destruída lentamente, como está sendo feito em todo o mundo. O desejo de buscar orientação de espíritos e Mestres, através de seus representantes, surge do medo do sofrimento.

Alguém pode, não importa quem, salvá-lo do sofrimento? Se você puder ser salvo por outra pessoa, então o problema da autoridade cessa. Você só precisa procurar a autoridade mais conveniente, adequada e idolatrá-la. Mas eu digo que ninguém pode salvá-lo do sofrimento, exceto você mesmo através da sua própria compreensão. É somente o seu próprio discernimento da causa do sofrimento, e não as explicações de outra pessoa, que pode abrir as portas para a maior bem-aventurança, para o êxtase da compreensão. Enquanto você estiver buscando conselhos e orientações, que são apenas um meio de escapar do conflito, enquanto você não discernir por si mesmo a causa do sofrimento, mas apenas ficar confuso com as explicações, ninguém poderá salvá-lo do sofrimento – nenhum padre, livro, teoria, sistema, espírito, Mestre. Porque essa realidade, essa liberdade do sofrimento está em você. E somente através de você, você pode chegar a ela.

Interrogante: Os ensinamentos atribuídos aos Grandes Instrutores – Cristo, Buda, Hermes e outros – têm algum valor para a obtenção do caminho direto para a Verdade?

Krishnamurti: Se você não entender mal, eu diria que os ensinamentos deles se tornam sem valor porque a mente humana, sendo tão sutil, tão astuta em seu desejo de autoproteção, distorce os ensinamentos para adequá-los a seus propósitos e cria sistemas e ideais como meio de fuga, surgindo igrejas petrificadas e sacerdotes exploradores. As religiões em todo o mundo, através dos seus sistemas e da esperteza da sua exploração organizada, procuram ensinar o homem a amar, a pensar, a viver de forma sã e inteligente; mas como um sistema pode criar amor ou ensinar você a pensar desinteressadamente? Como você não quer fazer isso, como você não está disposto a viver completamente, integralmente com a mente e o coração vulneráveis, você criou um sistema que se tornou seu mestre, um sistema que é contrário e destrutivo ao pensamento e ao amor. Portanto, é totalmente inútil multiplicar sistemas. Se a mente se libertar da ilusão das suas próprias exigências e anseios autoprotetores, então haverá amor, inteligência, então não haverá esta divisão criada pelas religiões e crenças, o homem não será contra o homem.

Interrogante: Se é um fato que foi predito o seu futuro como Instrutor do Mundo, então a predestinação não é um fato da natureza? E não somos, portanto, meramente escravos do nosso destino designado?

Krishnamurti: Se sua ação é incompleta, condicionada pelo passado, medo ou pelo ambiente, haverá um amanhã para completar essa ação. Ou seja, se o seu pensamento for limitado, impedido pela tradição, pelos preconceitos de classe, pelo medo ou pelos preconceitos religiosos, então ele não poderá se completar na ação e, portanto, ele criará o seu próprio destino, a sua própria limitação. Isto é, sua própria ação incompleta traz à tona o seu próprio futuro limitado. Onde há ação incompleta há sofrimento, que cria sua própria escravidão. Na verdadeira ação não há escolha, mas se a ação for impedida pela escolha, então todas as outras ações inevitavelmente criarão limitações maiores e mais estreitas. Portanto, em vez de apenas perguntar se existe predestinação ou não, comece a agir completamente. Ao perceber a necessidade de uma ação completa, você discernirá, na própria ação, os preconceitos de séculos que começam a impedir essa ação, restringindo sua realização. Quando existe o fluxo da ação, que é inteligência, então a vida é um devir contínuo sem o conflito da escolha.

Interrogante: O que é a força de vontade humana?

Krishnamurti: Não é nada além de uma resistência. A mente criou, através do seu desejo de autoproteção e conforto, muitos obstáculos e barreiras, provocando assim sua própria incompletude, seu próprio sofrimento. Para libertar-se desse sofrimento, a mente começa a lutar contra essas resistências e limitações autocriadas. Nesse conflito nasce e se desenvolve a vontade, com a qual a mente se identifica, dando origem à consciência do “eu. Se essas barreiras não existissem, haveria uma contínua realização na ação, e não uma superação de um conflito. Você está tentando superar, conquistar essas limitações autoimpostas, que apenas dão origem à resistência que chamamos de vontade. Mas se compreendêssemos porque essas barreiras foram criadas, então não haveria uma superação, uma conquista, que apenas cria mais resistência. Essas barreiras, esses obstáculos surgiram através do desejo de autoproteção e, portanto, há um conflito entre o eterno movimento da vida e esse desejo. Desse conflito surgem o sofrimento e as muitas fugas cuidadosamente cultivadas. Onde há fuga há ilusão, há a construção das barreiras.

A vontade é apenas uma das muitas ilusões que foram criadas na busca pela autoproteção. E é somente quando a mente se liberta do seu centro de ilusões e fica vazia criativamente que há o discernimento daquilo que é verdadeiro. O discernimento não é o resultado da vontade, porque a vontade surge da resistência. A vontade é o resultado do conflito da escolha, mas no discernimento não existe escolha.

Interrogante: O que é ação?

Krishnamurti: A ação é aquele movimento desimpedido da inteligência, livre do medo, da compulsão, do conflito da escolha autoprotetora. Essa ação pura é a própria expressão da vida em si. Agora, essa não é uma resposta filosófica a ser tratada apenas como uma teoria, impraticável na vida diária. Nós estamos envolvidos com a ação a cada momento do dia. E conheceremos o êxtase dessa ação desimpedida quando a mente estiver se renovando através da realização. Nós compreenderemos todo o significado da ação quando o pensamento estiver livre e desobstruído. Isto é, quando você romper com as falsas ilusões, com os falsos valores que você criou, que se tornaram seu ambiente, seu fardo, então surgirá o fluxo da realidade, da vida, que é a ação em si. Vocês precisam começar a discernir individualmente o significado da aquisitividade, sobre a qual se baseia toda nossa estrutura de pensamento e ação. Ao desembaraçarem-se dela, surge o sofrimento apenas quando não há compreensão, quando há compulsão. Mas para realizar o êxtase dessa ação desimpedida, o pensamento deve se libertar dos moldes dos ideais, despertando aquela incerteza única, a incerteza da não acumulação. Quando a mente é capaz de discernir sem o conflito da escolha, então existe o êxtase da ação.

18 de maio de 1935.