https://jkrishnamurti.org/content/rio-de-janeiro-3rd-public-talk-4th-may-1935
3ª Palestra no Rio de Janeiro
Amigos, ao longo dos tempos e na civilização atual, nós vemos como o indivíduo esperto explora o grupo, e o grupo, em contrapartida, explora o indivíduo. Há essa interação constante entre o indivíduo e o grupo através da sociedade, religiões, ideias dos líderes e dos ditadores. Existe também a exploração das mulheres pelos homens em certos países. E em outros países as mulheres exploram os homens. Existe uma forma sutil ou grosseira de exploração ocorrendo onde há interesse, seja nas propriedades privadas, nas religiões ou na política.
É sempre difícil penetrar no significado real que está além das palavras e não ser enganado por elas. Ao compreendermos completamente o significado atual de moralidade, então descobriremos por nós próprios, na ação, uma nova moralidade e os seus detalhes. A maioria das pessoas, depois de me ouvir, diz que lhes dei apenas ideias vagas que não são nada práticas. Mas eu não estou aqui para lhes dar um novo conjunto de regras ou um novo modo de ação, que seria apenas mais uma forma de exploração, mais uma jaula para lhes aprisionar. Estaríamos apenas trocando uma velha prisão por uma nova, o que seria totalmente inútil. Considerando que se começarmos a examinar e descobrir a base do atual código de conduta, de toda a estrutura da moralidade, então, no próprio processo de descoberta da verdadeira causa daquilo que chamamos de moralidade, começaremos a discernir a maneira da verdadeira ação individual, que será então moral. Essa ação da inteligência, livre de persuasão ou compulsão, é a verdadeira moralidade.
Nossa moralidade atual se baseia na proteção do indivíduo; é um sistema fechado que atua como uma cobertura para manter o indivíduo dentro do grupo. O indivíduo é tratado como um animal feroz que deve ser mantido na jaula da moralidade. Nós nos tornamos escravos de uma moralidade de grupo que cada um de nós ajudou a construir a partir do seu próprio desejo individual de segurança e conforto. Cada um de nós contribuiu para esse sistema de moralidade que se baseia na aquisição e na autoproteção esperta. No sistema fechado dessa chamada moralidade, nós criamos religiões estáticas com seus Deuses estáticos, imagens mortas, pensamentos petrificados. Essa prisão da moralidade se tornou tão poderosa, tão compulsiva que a maioria dos indivíduos vive com medo de romper com ela e limita-se a imitar as regras e a conduta dessa prisão.
Agora, através dessa moralidade fechada, nós não podemos encontrar a Verdade, nem fugindo dela. Se simplesmente escaparmos dessa moralidade através da destruição do código atual sem compreensão, nós estaremos apenas criando outra forma de autoproteção, outra prisão. Enquanto a mente estiver à procura de segurança, estiver buscando formas e meios de garantir sua própria segurança, ela inevitavelmente terá de criar leis e sistemas para sua própria proteção. Essa busca pela autoproteção nega a compreensão da realidade. A realidade só pode ser discernida quando a mente está totalmente nua, completamente despojada dessa ideia de autoproteção.
Portanto, você tem que se tornar intensamente consciente da causa dessa prisão, dessa construção contínua de seguranças, confortos e fugas em que a mente está envolvida. Quando você está completamente consciente da causa, então a própria mente começa a discernir a verdadeira maneira de agir no momento da experiência e, portanto, a moralidade se torna puramente individual; ela não pode ser transformada em um meio de exploração. Conhecendo a causa e estando continuamente consciente dela, a própria mente começa a romper a cobertura dessa moralidade autoprotetora, que se tornou tão esmagadora, tão destrutiva para a inteligência. Nessa consciência, que é o despertar da inteligência, a mente penetra no fluxo da realidade, que não pode se tornar uma religião estática, um meio de exploração, nem pode ser petrificada em um livro de orações dos sacerdotes.
Pergunta: Uma mera revolução social e econômica resolveria todos os problemas humanos ou ela precisaria ser precedida por uma revolução interior, espiritual?
Krishnamurti: A revolução pode vir e, em vez de um sistema capitalista, suponhamos que se estabeleça uma forma comunista de governo. Mas você pensa que a mera revolução externa resolverá os muitos problemas humanos? Sob o sistema atual vocês são forçados a se ajustarem a um certo método de pensamento, de moralidade, de ganhar dinheiro. Se um sistema diferente for estabelecido através da revolução haverá outra forma de compulsão, talvez para melhor. Mas como pode a mera compulsão trazer compreensão? Você está satisfeito em continuar vivendo de forma pouco inteligente no sistema atual, esperando que ocorra alguma mudança externa milagrosa que também alterará sua mente e seu coração? Certamente, só há uma maneira, que é ver que o atual sistema se baseia na exploração egoísta, na qual cada indivíduo procura implacavelmente sua própria segurança e, portanto, luta para preservar suas próprias distinções e aquisições. Compreendendo isso, o homem inteligente não esperará pela chegada de uma revolução, mas começará a alterar fundamentalmente sua ação, sua moralidade e libertará sua mente e seu coração de toda aquisitividade. Tal homem está livre da carga de qualquer sistema e, portanto, pode viver de forma inteligente no presente. Se você realmente deseja descobrir a verdadeira maneira de agir, então procure viver no presente, com a compreensão do inevitável.
Pergunta: Eu não pertenço a nenhuma religião, mas sou membro de duas sociedades que me dão conhecimento e sabedoria espiritual. Se eu desistir delas, como posso alcançar a perfeição?
Krishnamurti: Se compreenderem a inutilidade de todas as organizações religiosas, com seus interesses, com sua exploração, com a total estupidez das suas crenças baseadas na autoridade, na superstição e no medo – se compreenderem verdadeiramente o significado disso, então não pertencerão a nenhuma seita ou sociedade religiosa. Vocês acham que alguma sociedade ou algum livro pode lhes trazer sabedoria? Livros e sociedades podem fornecer informação; mas se você diz que uma sociedade pode lhe trazer sabedoria, então você meramente depende dela, e ela se torna sua exploradora. Se a sabedoria pudesse ser adquirida através de alguma sociedade ou seita religiosa, então todos nós seríamos sábios porque temos religiões conosco há milhares de anos. Mas a sabedoria não pode ser adquirida dessa maneira. A sabedoria é a compreensão do fluxo contínuo da vida, ou da realidade, que só pode ser discernido quando a mente está aberta e vulnerável, ou seja, quando a mente não está mais impedida pelos seus próprios desejos, reações e ilusões autoprotetoras. Nenhuma sociedade, religião, sacerdote, nenhum líder jamais lhe dará sabedoria. É só através do nosso próprio sofrimento, do qual tentamos escapar nos juntando a organizações religiosas e mergulhando em teorias filosóficas, é somente estando conscientes da causa do sofrimento, e nos libertando dela, que a sabedoria nasce natural e docemente.
Pergunta: Eu desejo muitas coisas da vida que não tenho. Você pode me dizer como obtê-las?
Krishnamurti: Por que você quer muitas coisas? Todos nós devemos ter roupas, comida, abrigo. Mas o que está por trás do desejo por muitas coisas? Nós queremos coisas porque pensamos que através das posses seremos felizes, que através da aquisição obteremos poder. Por trás dessa questão está o desejo por poder. Na busca pelo poder há sofrimento, e através do sofrimento há o despertar da inteligência que revela a total futilidade do poder. Então, há a compreensão das necessidades. Você pode não querer muitas coisas físicas, talvez veja o absurdo de ter muitas posses, mas você pode querer poder espiritual. Entre isso e o desejo por muitas coisas não há diferença. Eles são iguais. Um você chama de materialista e ao outro você dá um nome mais refinado – espiritual. Mas em essência são apenas maneiras de buscar sua própria segurança, e nisso nunca poderá haver felicidade ou inteligência.
Pergunta: Você parece negar o valor da disciplina e dos padrões morais. Sem disciplina e moralidade, a vida não será um caos?
Krishnamurti: Como disse no início da minha palestra desta noite, nós transformamos a moralidade e a disciplina em um abrigo para a nossa própria proteção, sem qualquer significado profundo, sem qualquer realidade. Não existem guerras, exploração implacável, caos total no mundo apesar das suas disciplinas, religiões, dos seus rígidos moldes de moralidade? Portanto, vamos olhar para esta estrutura da moralidade e disciplina que construímos e que nos explora, que está destruindo a inteligência humana. No próprio exame desta estrutura fechada da moralidade e disciplina, com muito cuidado e sem preconceitos, você começará a compreender e desenvolver aquela verdadeira moralidade que não pode ser sistematizada, petrificada.
A moralidade, a disciplina que temos agora se baseia na procura do indivíduo pela sua própria segurança através da religião e da exploração econômica. Você pode falar sobre amor e fraternidade aos domingos, mas às segundas você explora outras pessoas em suas diversas ocupações. A religião, a moralidade, a disciplina funcionam apenas como um disfarce para a hipocrisia. Tal moralidade, do meu ponto de vista, é imoral. Assim como procuramos implacavelmente a segurança econômica, da qual nasce uma moralidade adequada para esse propósito, também criamos religiões em todo o mundo que nos prometem a imortalidade através das suas disciplinas e moralidades fechadas e peculiares. Enquanto existir essa moralidade fechada haverá guerras e exploração, não poderá haver o verdadeiro amor do homem. Essa moralidade, essa disciplina se baseiam realmente no egoísmo e na busca implacável pela segurança individual. Quando a mente se liberta deste centro de consciência limitada que se baseia no autoengrandecimento, então surge o extraordinário e delicado ajustamento à vida, que não tem regras e regulamentos, mas que é perfeitamente inteligente, se expressando na ação integrada do verdadeiro discernimento.
Pergunta: Eu não me importo com o que acontece depois da morte, mas tenho medo de morrer. Devo lutar contra esse medo? E como posso superá-lo?
Krishnamurti: Vivendo no presente. A eternidade não está no futuro, ela está sempre no presente. Não há remédio ou substituição para o medo, exceto a compreensão da causa do próprio medo. A mente está sendo continuamente limitada pelas memórias do passado, e essas memórias impedem a realização da ação no presente. Portanto, não há a completude da ação no presente, o que cria o medo da morte.
Viver no presente não é uma façanha intelectual. Exige a compreensão da ação e a libertação da mente da ilusão. A mente tem o poder de criar ilusões, e estamos principalmente ocupados com isso – criar ilusões, escapar, encobrir coisas que não queremos compreender. A mente cria ilusões como meio de fuga. E essas ilusões, com o seu poder, impedem a completude da ação e a plena compreensão do presente. Assim, as velhas ilusões estão criando e aumentando os obstáculos, as limitações. É por isso que começamos a pensar em termos de tempo como meio de compreender. A compreensão está sempre no presente, não no futuro. E a mente se recusa a discernir imediatamente porque isso envolve uma revolta inteligente contra tudo o que construiu na busca pela sua própria segurança.
Pergunta: Eu permito que minha imaginação vagueie sem medo. Isso é certo?
Krishnamurti: Na verdade, você pode ficar com medo de muitas coisas. Este voo imaginativo é outra forma de fugir dos problemas da vida. Se for uma fuga, é um desperdício total de energia mental. Essa energia só pode se tornar criativa e eficaz quando ela se libertar dos medos e das ilusões que a tradição e os desejos de autoproteção lhe impuseram.
Pergunta: Você está pregando o individualismo?
Krishnamurti: Receio que o interrogante não tenha entendido muito bem o que eu disse. Não estou defendendo o individualismo de forma alguma. Infelizmente, a grande maioria das pessoas dificilmente tem uma oportunidade de expressão individual. Elas podem pensar que estão agindo de forma voluntária e livre, mas infelizmente são apenas máquinas que funcionam em um determinado ritmo, sob a compulsão das circunstâncias e do ambiente. Portanto, como pode haver a realização individual, que é a forma mais elevada de inteligência? O que chamamos de expressão individual, no caso da grande maioria das pessoas, nada mais é do que uma reação na qual há muito pouca inteligência.
Mas existe um tipo diferente de individualidade, o da unicidade, que é o resultado de uma ação voluntária e compreensiva. Ou seja, se compreendermos o ambiente e agirmos com inteligência, discernimento, então haverá verdadeira individualidade. Essa unicidade não é separativa porque ela é a própria inteligência.
A inteligência é singular, única. Mas se você meramente agir através da compulsão das circunstâncias, então, embora você possa pensar que é um indivíduo, suas ações são apenas reações nas quais não há inteligência verdadeira. Como o indivíduo atual é apenas uma reação, não qual não há inteligência, existe caos no mundo, cada um buscando sua própria segurança e realização irrefletida.
A inteligência é única; ela não pode ser dividida como sua e minha. É apenas a ausência de inteligência que pode ser separada em unidades, como a sua e a minha, e essa é a feiura da distinção da qual vem a exploração, a crueldade e o sofrimento.
04/05/1935.