https://jkrishnamurti.org/content/adyar-5th-public-talk-2nd-january-1934
Adyar – 5° palestra
Esta manhã quero explicar algo que requer um pensamento muito delicado; e espero que vocês ouçam, ou melhor, tentem compreender o que vou dizer, não com oposição, mas com crítica inteligente. Vou falar sobre um assunto que, se compreendido, se minuciosamente aprofundado, lhes dará uma visão inteiramente nova da vida. Além disso, eu peço que vocês não pensem em termos de opostos. Quando eu digo que a certeza é uma barreira, não pensem por isso que vocês devem ser incertos; quando falo da inutilidade da segurança, por favor, não pensem que vocês devem buscar a insegurança.
Quando vocês realmente considerarem, vocês perceberão que a mente está constantemente buscando certezas, seguranças; ela está buscando a certeza de um objetivo, de uma conclusão, de um propósito na vida. Vocês perguntam: “Existe um plano divino, há predeterminação, não existe livre arbítrio? Não podemos nós, realizando esse plano, tentando compreendê-lo, guiar-nos por esse plano?” Em outras palavras, vocês querem seguranças, certezas para que a mente e o coração possam se moldar atrás disso, possam se adaptar a isso. E quando vocês perguntam sobre o caminho para a verdade, vocês estão realmente buscando garantia, certeza, segurança.
Quando vocês falam de um caminho para a verdade, isso implica que a verdade, essa realidade viva, não está no presente, mas em algum lugar distante, em algum lugar no futuro. Agora, para mim, a verdade é realização, e para a realização não pode haver caminho. Assim parece, pelos menos para mim, que a primeira ilusão em que vocês estão presos é esse desejo por segurança, por certeza, essa busca por um caminho, uma maneira, um modo de vida pelo qual vocês possam atingir o objetivo desejado, que é a verdade. Sua convicção de que a verdade existe apenas em um futuro distante implica imitação. Quando vocês perguntam o que é a verdade, vocês estão, na verdade, pedindo que lhes diga o caminho que leva à verdade. Então vocês querem saber qual sistema, qual modo, qual disciplina seguir para ajudá-los no caminho para a verdade.
Mas para mim não há caminho para a verdade; a verdade não pode ser compreendida por nenhum sistema, por nenhum caminho. Um caminho implica uma meta, um fim estático e, portanto, um condicionamento da mente e do coração por esse fim, o que necessariamente exige disciplina, controle, ganância. Essa disciplina, esse controle torna-se uma carga; ela lhes rouba a liberdade e condiciona sua ação na vida diária. Investigar a verdade implica um objetivo, um fim estático, que você está procurando. E o fato de vocês estarem buscando um objetivo mostra que a mente de vocês está buscando segurança, certeza. Para alcançar essa certeza, a mente deseja um caminho, um sistema, um método que ela possa seguir, e essa segurança vocês pensam encontrar pelo condicionamento da mente e do coração através da autodisciplina, do autocontrole, da supressão.
Mas a verdade é uma realidade que não pode ser compreendida seguindo qualquer caminho. A verdade não é um condicionamento, uma modelagem da mente e do coração, mas uma realização constante, uma realização na ação. O fato de indagarem sobre a verdade implica que vocês acreditam em um caminho para ela, e essa é a primeira ilusão na qual vocês estão presos. Nisso existe imitação, distorção. Agora, por favor, não digam: “Sem um fim, um propósito, a vida se torna caótica”. Eu quero explicar para vocês a falsidade dessa concepção. Eu digo que cada um deve descobrir por si mesmo o que é a verdade, mas isso não significa que cada um deva formular um caminho para si, que cada um deva percorrer um caminho individual. Não significa isso de maneira alguma, mas significa que cada um deve compreender a verdade por si mesmo. Espero que vocês vejam a diferença entre as duas coisas. Quando vocês têm que compreender, que descobrir, experimentar com a vida, um caminho se torna um obstáculo. Mas se vocês estabelecerem um caminho para si mesmos, então existe um ponto de vista individual, um ponto de vista estreito, limitado. A verdade é o movimento do eterno devir, portanto não é um fim, não é estático. Por isso a busca por um caminho nasce da ignorância, da ilusão. Mas quando a mente é flexível, está livre de crenças, memórias, livre do condicionamento da sociedade, então nessa ação, nessa flexibilidade, existe o movimento infinito da vida.
Um verdadeiro cientista, como eu disse outro dia, é aquele que experimenta continuamente, sem um resultado em vista. Ele não busca resultados, que são meros subprodutos de sua busca. Então, quando vocês estão procurando, experimentando, sua ação se torna apenas um subproduto desse movimento. Um cientista que busca um resultado não é um verdadeiro cientista. Ele não está verdadeiramente procurando. Mas se ele estiver buscando sem a ideia de ganho, então, embora possa ter resultados em sua busca, esses resultados são de importância secundária para ele. Agora, vocês estão preocupados com resultados e, por isso, sua busca não é viva, dinâmica. Vocês estão buscando um fim, um resultado e, por isso, sua ação se torna cada vez mais limitada. Somente quando vocês buscam sem desejo por sucesso, por conquista, sua vida se torna continuamente livre, rica. Isso não significa que em sua busca não haverá ação, nenhum resultado; isso significa que a ação, os resultados, não serão sua primeira consideração.
Tal como um rio rega as árvores que crescem em suas margens, esse movimento de busca nutre nossas ações. A ação cooperativa, a ação unida, é a sociedade. Vocês querem criar uma sociedade perfeita. Mas não pode haver uma sociedade perfeita, porque a perfeição não é um fim, uma culminação. A perfeição é realização, ela está constantemente em movimento. A sociedade não pode viver de acordo com um ideal, nem o homem, porque a sociedade é o homem. Se a sociedade tenta moldar-se de acordo com um ideal, se o homem tenta viver de acordo com um ideal, nenhum dos dois está verdadeiramente se realizando, ambos estão em decadência. Mas se o homem está nesse movimento de realização, então sua ação será harmoniosa, completa; sua ação não será uma mera imitação de um ideal.
Então, para mim, a civilização não é uma conquista, mas um movimento constante. As civilizações atingem um determinado auge, existem por um tempo e depois declinam, porque nelas não há realização para o homem, mas apenas a imitação constante de um padrão. Só há plenitude, realização, quando a mente e o coração estão em constante movimento de realização, de busca. Agora, não digam: “Nunca haverá um fim para a busca?” Vocês não estão mais procurando uma conclusão, uma certeza, portanto viver não é uma série de culminações, mas um movimento contínuo, uma realização. Se a sociedade estiver meramente se aproximando de um ideal, a sociedade logo decairá. Se a civilização for apenas uma conquista de indivíduos reunidos como grupo, ela já está em processo de decadência. Mas se a sociedade, se a civilização for o resultado desse movimento constante de realização, então ela perdurará, será a plenitude do homem.
Para mim, a perfeição não é a conquista de uma meta, de um ideal, de um absoluto através dessa ideia de progresso. A perfeição é a realização do pensamento, da emoção e, portanto, da ação – realização essa que pode existir a qualquer momento. Portanto, a perfeição está livre do tempo, ela não é o resultado do tempo.
Bem, senhores, há muitas perguntas, e tentarei respondê-las o mais concisamente possível.
Interrogante: Se uma guerra estourar amanhã e a lei de recrutamento entrar em vigor imediatamente para obrigá-lo a pegar em armas, você se juntará ao exército e gritará: “Às armas, às armas!” Como os líderes da Sociedade Teosófica fizeram em 1914 ou você vai se opor à guerra?
Krishnamurti: Não nos preocupemos com o que os líderes Teosóficos fizeram em 1914. Onde há nacionalismo deve haver guerra. Onde há vários governos soberanos, deve haver guerra. É inevitável. Pessoalmente, eu não participaria de atividades de guerra de qualquer tipo, porque não sou nacionalista, não faço distinções de classe, nem sou possessivo. Eu não me juntaria ao exército nem daria ajuda de forma alguma. Eu não me juntaria a nenhuma organização que existe apenas com o propósito de curar os feridos e mandá-los de volta ao campo de batalha para serem feridos novamente. Mas eu chegaria a uma compreensão sobre esses assuntos antes da ameaça de guerra.
Agora, pelo menos por enquanto, não há nenhuma guerra efetiva. Quando chega a guerra, faz-se propaganda inflamada, contam-se mentiras sobre o suposto inimigo, o patriotismo e o ódio são fomentados, as pessoas perdem a cabeça em sua suposta devoção ao seu país. Eles gritam: “Deus está do nosso lado; e o diabo com o inimigo”. E ao longo dos séculos, eles gritam essas mesmas palavras. Ambos os lados lutam em nome de Deus; de ambos os lados os sacerdotes abençoam – ideia maravilhosa – os armamentos. Agora vão abençoar até os aviões bombardeiros, de tão consumidos que estão com aquela doença que cria a guerra: o nacionalismo, sua própria classe ou segurança individual. Portanto, enquanto estamos em paz – embora “paz” seja uma palavra estranha para descrever a mera cessação das hostilidades armadas – enquanto não estamos, em qualquer caso, realmente matando uns aos outros no campo de batalha, podemos compreender quais são as causas da guerra, e nos desvencilharmos dessas causas. E se vocês forem claros em sua compreensão, em sua liberdade, com tudo o que essa liberdade implica – que vocês podem ser mortos a tiros por se recusarem a seguir a mania de guerra – então vocês agirão verdadeiramente quando chegar o momento, qualquer que seja sua ação.
Portanto, a questão não é o que vocês farão quando a guerra chegar, mas o que vocês estão fazendo agora para evitar a guerra. Vocês que estão sempre gritando comigo por minha atitude negativa, o que vocês estão fazendo agora para acabar com a própria causa da guerra? Estou falando da verdadeira causa de todas as guerras, não apenas da guerra imediata que inevitavelmente ameaça enquanto cada nação acumular armamentos. Enquanto existir o espírito de nacionalismo, o espírito de diferenças de classe, de particularidade e de possessividade, deve haver guerra. Vocês não podem evitá-la. Se vocês estiverem realmente enfrentando o problema da guerra, como deveriam estar agora, vocês terão que tomar uma ação definida, uma ação definida, positiva. E pela sua ação, vocês ajudarão a despertar a inteligência, que é a única medida preventiva para a guerra. Mas para fazerem isso, vocês devem se libertar desta doença do “Meu Deus, meu país, minha família, minha casa”.
Interrogante: Qual é a causa do medo, particularmente do medo da morte? É possível se livrar completamente desse medo? Por que o medo existe universalmente, mesmo embora o senso comum fale contra ele, considerando que a morte é inevitável e é uma ocorrência perfeitamente natural?
Krishnamurti: Para aquele que se realiza constantemente, não existe medo da morte. Se formos realmente completos a cada momento, a cada dia, então não conheceremos o medo do amanhã. Mas nossas mentes criam incompletude na ação e, portanto, o medo do amanhã. Temos sido treinados pela religião, pela sociedade para a incompletude, para o adiamento, e isso nos serve de fuga do medo, porque temos o amanhã para completar o que não conseguimos realizar hoje.
Mas só um momento, por favor. Gostaria que vocês olhassem para esse problema não a partir do pano de fundo de suas tradições modernas ou antigas, nem através de seu compromisso com a reencarnação, mas de uma forma muito simples. Então vocês compreenderão a verdade, que os libertará completamente do medo. Para mim, a ideia de reencarnação é mero adiamento. Mesmo que vocês acreditem profundamente na reencarnação, vocês ainda têm medo e sofrimento quando alguém morre ou medo de sua própria morte. Vocês podem dizer: “Viverei no outro lado, serei muito mais feliz e farei um trabalho melhor lá do que o trabalho que posso fazer aqui”. Mas suas palavras são apenas palavras. Elas não podem acalmar o medo torturante que está sempre em seu coração. Então, vamos abordar esse problema do medo em vez da questão sobre reencarnação. Quando vocês tiverem compreendido o que é o medo, verão a insignificância da reencarnação; então nem precisaremos discuti-la. Não me perguntem o que acontece com o homem ferido, que está cego nesta vida após a morte. Se vocês compreenderem o ponto central, então considerarão tais questões de forma inteligente.
Vocês têm medo da morte porque seus dias são incompletos, porque nunca há realização nas suas ações. Não é assim? Quando sua mente está presa em uma crença, crença no passado ou no futuro, vocês não podem compreender a experiência completamente. Quando sua mente é preconceituosa, não pode haver compreensão completa da experiência na ação. Por isso vocês dizem que devem ter o amanhã para completar essa ação, e têm medo de que o amanhã não chegue. Mas se vocês puderem completar a ação no presente, então o infinito estará diante de vocês. O que os impede de viver completamente? Por favor, não me perguntem como completar a ação, que é a maneira negativa de olhar para a vida. Se eu lhes disser, então vocês apenas tornarão sua ação imitativa, e nisso não há completude. O que vocês terão que fazer é descobrir o que os impede de viver completamente, infinitamente; e isso, vocês descobrirão, é esta ilusão de atingir um fim, uma certeza na qual sua mente está presa, esta ilusão de atingir um objetivo. Se vocês estão constantemente contando com o futuro para alcançar, ganhar, ter sucesso, conquistar, sua ação no presente tem que ser limitada, tem que ser incompleta. Quando vocês estão agindo de acordo com suas crenças ou princípios, naturalmente sua ação tem que ser limitada, incompleta. Quando sua ação é baseada na fé, essa ação não é realização; é meramente o resultado da fé.
Portanto, existem muitos obstáculos em nossas mentes; há o instinto de possessividade, cultivado pela sociedade, e o instinto de não-possessividade, também cultivado pela sociedade. Quando há conformidade e imitação, quando a mente está presa à autoridade, não pode haver realização, e daí surge o medo da morte e os muitos outros medos que se escondem no subconsciente. Deixei minha resposta clara? Voltaremos a lidar com esse problema de uma maneira diferente.
Interrogante: Como surge a memória e quais são os diferentes tipos de memória? O senhor disse: “No presente está contida toda a eternidade”. Por favor, aprofunde mais essa declaração. Isso significa que o passado e o futuro não têm realidade subjetiva para o homem que vive completamente no presente? Podem os erros passados ou as lacunas na compreensão, se podemos chamá-los assim, ser ajustadas ou remediadas no presente sempre contínuo no qual a ideia de um futuro pode não ter lugar?
Krishnamurti: Se vocês acompanharam a resposta anterior, entenderão a causa da memória, verão como ela surge. Se vocês não compreendem um incidente, se vocês não vivem completamente uma experiência, então a memória desse incidente, dessa experiência, permanece em sua mente. Quando vocês têm uma experiência que não conseguem compreender completamente, cujo significado vocês não conseguem ver, então sua mente retorna a essa experiência. Assim a memória é criada. Nasce, em outras palavras, da incompletude da ação. E como vocês têm muitas camadas de memórias que surgem de ações incompletas, surge aquela autoconsciência que vocês chamam de ego, e que não é nada além de uma série de memórias, uma ilusão sem realidade, sem substância, seja aqui ou no plano mais alto.
Existem vários tipos de memória. Por exemplo, existe a memória do passado, como quando vocês se recordam de uma bela cena. Mas vocês estão interessados nisso? Vejo tantas pessoas olhando ao redor. Se vocês não estiverem realmente interessados em acompanhar isso, discutiremos nacionalismo e golfe ou tênis. (Risos)
Agora, há a memória que está associada ao prazer de ontem. Isto é, vocês desfrutaram de uma bela cena, admiraram o pôr do sol ou a luz da lua nas águas. Depois, quando vocês estão no escritório, sua mente retorna àquela cena. Por quê? Porque quando vocês estão em um ambiente desagradável e feio, quando sua mente e seu coração estão presos no que não é agradável, sua mente tende automaticamente a retornar à experiência agradável de ontem. Esse é um tipo de memória. Em vez de alterarem as condições ao seu redor, em vez de mudarem o ambiente ao seu redor, vocês refazem os passos de uma experiência agradável e vivem nessa memória, suportando e tolerando o desagradável porque sentem que não podem alterá-lo. Portanto, o passado permanece no presente. Deixei isso claro?
Depois, há a memória, agradável ou desagradável, que se precipita na mente mesmo que você não a queira. Incidentes passados não convidados vêm à sua mente porque vocês não estão vitalmente interessados no presente, porque vocês não estão completamente vivos para o presente.
Outro tipo de memória é a que se relaciona com crenças, princípios, ideais. Todos os ideais e princípios são coisas realmente mortas, coisas do passado. A memória dos ideais persiste quando vocês não conseguem conhecer ou compreender o movimento pleno da vida. Vocês querem uma medida para avaliar esse movimento, um padrão pelo qual vocês possam julgar a experiência; e agindo na medida desse padrão é o que vocês chamam de viver de acordo com um ideal. Porque vocês não conseguem compreender a beleza da vida, porque vocês não conseguem viver em sua plenitude, em sua glória, vocês querem um ideal, um princípio, um padrão imitativo para dar significado ao seu viver.
Existe a memória da autodisciplina, que é a vontade. A vontade nada mais é do que memória. Afinal, vocês começam a se disciplinar de acordo com o padrão da memória. Vocês dizem: “Fiz isso ontem, e decidi não fazer isso hoje”. Portanto, a ação, o pensamento, a emoção, na grande maioria dos casos, é inteiramente o resultado do passado; baseia-se na memória. Portanto, tal ação nunca é realização. Ela sempre deixa uma cicatriz de memória, e o acúmulo de muitas dessas cicatrizes torna-se a autoconsciência, o “eu”, que está sempre impedindo você de compreender completamente. Essa consciência do “eu” é um círculo vicioso.
Assim, temos inúmeras memórias, memórias de disciplina e vontade, de ideais e crenças, de atrações agradáveis e perturbações desagradáveis. Por favor, acompanhem o que estou dizendo. Não se incomodem com os outros. Se isso não lhes interessa, se suas mentes estão constantemente vagueando, vocês também podem ir embora. Eu posso continuar, mas o que eu digo não significará nada para vocês se vocês não estiverem ouvindo.
Estamos agindo constantemente através desse véu de memórias e, portanto, nossa ação é sempre incompleta. Por isso nos confortamos com a ideia de progresso; pensamos em uma série de vidas tendendo em direção à perfeição. Assim, nunca temos um dia, nenhum momento de rica e plena completude, porque essas memórias estão sempre impedindo, restringindo, limitando, dificultando nossa ação.
Voltando à pergunta: “Isso significa que o passado e o futuro não têm realidade subjetiva para o homem que vive inteiramente no presente?” Não me façam essa pergunta. Se vocês estiverem interessados, se quiserem erradicar o medo, se vocês realmente quiserem viver ricamente, venerar o dia em que a mente está livre do passado e do futuro, então vocês saberão como viver completamente.
“Podem os erros passados ou as lacunas na compreensão, se podemos chamá-los assim, ser ajustadas ou remediadas no presente sempre contínuo no qual a ideia de um futuro pode não ter lugar?” Compreendem a pergunta? Como não li anteriormente essa pergunta, tenho que pensar à medida que vou avançando. Vocês só podem remediar as lacunas passadas na compreensão no presente, essa é a minha opinião. A introspecção, o processo de análise do passado, não produz compreensão, porque vocês não podem ter compreensão a partir de uma coisa morta. Vocês só podem ter compreensão no presente sempre ativo, vivo. Essa pergunta abre um vasto campo, mas não quero entrar nisso agora. É somente no momento do presente, no momento de crise, no momento de enorme e intenso questionamento nascido da ação total, que as lacunas passadas na compreensão podem ser remediadas, destruídas; isso não pode ser feito investigando o passado, examinando suas ações passadas. Deixem-me dar um exemplo que tornará, eu espero, o assunto mais claro para vocês. Suponham que vocês tenham preconceitos de classe, e não tenham consciência disso. Mas o treinamento nesses preconceitos de classe, a memória dele, ainda permanece com vocês, ainda é uma parte de vocês. Agora, para libertarem a mente dessa memória ou treinamento, não voltem ao passado e digam: “Vou examinar minha ação para ver se essa ação está vinculada aos preconceitos de classe”. Não façam isso, mas em seus sentimentos, em suas ações, estejam completamente conscientes, e então essas memórias de preconceitos de classe se precipitará em sua mente; nesse momento de inteligência desperta, a mente começa a se libertar dessa escravidão.
Novamente, se vocês são cruéis – e a maioria das pessoas não tem consciência de sua crueldade – não examinem suas ações para descobrirem se são cruéis ou não. Dessa maneira, vocês nunca descobrirão, nunca compreenderão; porque a mente está olhando constantemente para a crueldade e não para a ação e, portanto, está destruindo a ação. Mas se vocês estiverem completamente conscientes na ação, se sua mente e seu coração estiverem completamente vivos na ação, no momento da ação vocês verão que são cruéis. Assim, vocês descobrirão a causa real, a própria raiz da crueldade, não os meros incidentes dela. Mas, vocês só podem fazer isso na plenitude da ação, quando estiverem totalmente conscientes na ação. As lacunas na compreensão não podem ser terminadas pela introspecção, pelo exame ou pela análise de um incidente passado. Isso só pode ser feito no momento da própria ação, que deve ser sempre atemporal. Eu não sei quantos de vocês compreenderam isso. O problema é realmente muito simples, e tentarei explicá-lo de forma mais simples. Não estou usando termos filosóficos ou técnicos, porque não conheço nenhum. Estou falando em linguagem cotidiana.
A mente está habituada a analisar o passado, a dissecar a ação para compreendê-la. Mas eu afirmo que vocês não conseguirão compreender dessa maneira, porque tal análise sempre limita a ação. Exemplos concretos de tal limitação na ação podem ser vistos aqui na Índia e em outros lugares, casos em que a ação quase cessou. Não tentem analisar sua ação. Em vez disso, se vocês quiserem descobrir se têm preconceitos de classe, se são hipócritas, nacionalistas, se são preconceituosos, limitados pela autoridade, imitativos – se vocês estão realmente interessados em descobrir esses obstáculos, então tornem-se completamente conscientes, tornem-se conscientes do que estão fazendo. Não sejam apenas observadores, não olhem para sua ação apenas objetivamente, a partir do exterior, mas tornem-se completamente conscientes, tanto mental quanto emocionalmente, conscientes com todo o seu ser no momento da ação. Então vocês verão que as muitas memórias impeditivas se precipitarão em sua mente e os impedirão de agir plenamente, completamente. Nessa consciência, nessa chama, a mente será capaz de se libertar desses obstáculos passados sem esforço. Não me perguntem: “Como?” Simplesmente tentem. Suas mentes estão sempre pedindo um método, perguntando como fazer isso ou aquilo. Mas não há “como”. Experimentem e vocês descobrirão.
Interrogante: Já que a entrada dos Harijans nos templos ajuda a acabar com uma das muitas formas de divisão entre homem e homem que existem na Índia, você apoia esse movimento que está sendo defendido cuidadosamente neste país atualmente?
Krishnamurti: Agora, por favor, compreendam que não estou atacando nenhuma personalidade. Não perguntem: “Você está atacando Ghandhiji?” E assim por diante. Eu não penso que o problema da distinção de classe na Índia ou em qualquer outro lugar será resolvido permitindo que os Harijans entrem nos templos. A distinção de classe só cessará quando não houver mais templos, mais igrejas, quando não houver mais mesquitas e sinagogas; porque a verdade, Deus não está em uma pedra, em uma imagem esculpida, não está contida entre quatro paredes. Essa realidade não está em nenhum desses templos, nem em nenhuma das cerimônias realizadas neles. Portanto, por que se preocupar com quem entra e quem não entra nesses templos?
Muitos de vocês sorriem e concordam, mas não sentem essas coisas. Vocês não sentem que a realidade está em toda parte, em vocês mesmos e em todas as coisas. Para vocês, a realidade é personificada, limitada, confinada em um templo. Para vocês, a realidade é um símbolo, seja ele Cristão ou Budista, seja ele associado a uma imagem ou a nenhuma imagem. Mas a realidade não é um símbolo. A realidade não tem símbolo. Ela é. Vocês não podem esculpi-la em uma imagem, limitá-la por uma pedra, por uma cerimônia ou por uma crença. Quando essas coisas não existirem mais, as discórdias entre os homens cessarão, assim como quando o nacionalismo – que tem sido cultivado ao longo dos séculos para fins de exploração – não existir mais, não haverá mais guerras. Os templos, com todas as suas superstições, com seus exploradores, os sacerdotes, foram criados por vocês. Os sacerdotes não podem existir sozinhos. O sacerdócio pode existir como meio de subsistência, mas isso logo desaparecerá quando as condições econômicas mudarem e os sacerdotes alterarem seu ofício. A causa, a raiz de todas essas coisas, dos templos, do nacionalismo, da exploração, da possessividade, está em seu desejo por segurança, por conforto. A partir de sua própria ganância, vocês criam inúmeros exploradores, sejam eles os capitalistas, os sacerdotes, os professores ou gurus, e vocês se tornam os explorados. Enquanto essa ganância, essa auto segurança existir, haverá guerras, haverá distinções de casta.
Vocês não podem se livrar do veneno apenas discutindo, falando, organizando. Quando vocês, como indivíduos, despertarem para o absurdo, a falsidade, a hediondez de todas essas coisas, quando vocês realmente sentirem dentro de vocês a crueldade grosseira de tudo isso, só então vocês criarão organizações das quais não se tornarão escravos. Mas se vocês não despertarem, surgirão organizações que farão de vocês seus escravos. Isso é o que está acontecendo agora em todo o mundo. Pelo amor de Deus, despertem para todas essas coisas, pelo menos aqueles de vocês que pensam! Não inventem novas cerimônias, não criem templos, novas ordens secretas. Eles são apenas outras formas de exclusividade. Não pode haver compreensão, sabedoria enquanto este espírito de exclusividade existir, enquanto vocês estiverem procurando ganho, segurança. A sabedoria não é proporcional ao progresso. A sabedoria é espontânea, natural; ela não pode resultar do progresso; ela existe na realização.
Portanto, mesmos que todos vocês, Brâmanes e não Brâmanes, tenham permissão para entrar nos templos, isso não dissolverá as distinções de classe. Porque vocês irão mais tarde do que os Harijans, vocês se lavarão com mais ou menos cuidado. Esse veneno da exclusividade, essa ferida em seus corações não foi extirpada, e ninguém vai extirpá-la por vocês. O comunismo e a revolução podem vir e acabar com todos os templos deste país, mas esse veneno continuará existindo, apenas de uma forma diferente. Não é assim? Não acenem com as cabeças em sinal de concordância, porque no momento seguinte vocês farão exatamente o contrário do que estou falando. Não estou julgando vocês.
Só há uma maneira de resolver todos esses problemas, que é fundamentalmente, não superficialmente, sintomaticamente. Se vocês os abordarem fundamentalmente vai haver uma tremenda revolução; pai ficará contra filho, irmão contra irmão. Será um tempo de luta, um estado de guerra, não de paz, porque há muita corrupção e decadência. Mas todos vocês querem paz, querem tranquilidade a qualquer preço, com todo esse veneno pernicioso em seus corações e mentes. Eu lhes digo que quando um homem busca a verdade, ele é contra todas essas crueldades, barreiras, explorações; ele não lhes oferece conforto; ele não lhes traz paz. Pelo contrário, ele luta porque vê as muitas instituições falsas, as situações corruptas que existem. É por isso que eu digo que se vocês estão buscando a verdade, vocês devem ficar sozinhos – pode ser contra a sociedade, contra a civilização. Mas, infelizmente, pouquíssimas pessoas estão verdadeiramente procurando. Eu não estou julgando vocês. Estou dizendo que suas próprias ações deveriam revelar-lhes que vocês estão construindo, em vez de destruir, esses muros de distinção de classe; que vocês estão protegendo-os em vez de demoli-los, valorizando-os em vez de derrubá-los, porque vocês estão continuamente buscando autoglorificação, segurança, conforto de uma forma ou de outra.
Interrogante: Não se pode alcançar a libertação e a verdade, este movimento eterno e mutável da vida, mesmo pertencendo a uma centena de sociedades? Não se pode ter liberdade interior deixando os elos exteriores intactos?
Krishnamurti: A realização da verdade não tem nada a ver com nenhuma sociedade. Portanto, você pode pertencer ou não. Mas se você estiver usando sociedades, corpos sociais ou religiosos como meio de compreender a verdade, isso será apenas cinzas.
“Não se pode ter liberdade interior deixando os elos exteriores intactos?” Sim, mas ao longo desse caminho estão o engano, o autoengano, a astúcia e a hipocrisia, a menos que se seja supremamente inteligente e esteja constantemente desperto. Vocês podem dizer: “Eu realizo todas estas cerimônias, pertenço a várias sociedades, porque não quero quebrar minha conexão com elas. Sigo gurus, o que sei que é absurdo, mas quero ter paz com minha família, viver harmoniosamente com meu próximo e não trazer discórdia a um mundo já confuso.” Mas temos vivido em tais enganos durante tanto tempo, as nossas mentes tornaram-se tão astutas, tão sutilmente hipócritas, que agora não conseguiremos descobrir ou compreender a verdade a menos que cortemos esses laços. Embotamos de tal modo nossas mentes e corações que, a menos que cortemos os laços que nos prendem e, portanto, criamos um conflito, não conseguiremos descobrir se estamos verdadeiramente livres ou não. Mas um homem de verdadeira compreensão – e há muito poucos – descobrirá por si mesmo. Então não haverá elos que ele deseja manter ou quebrar. A sociedade o desprezará, seus amigos o deixarão, suas relações não terão nada a ver com ele; todos os elementos negativos se afastarão dele, ele não terá que se afastar deles. Mas esse rumo significa percepção sábia; significa realização na ação, não adiamento. E o homem adiará enquanto a mente e o coração estiverem presos ao medo.
02/01/1934.